Por Gabriel Pierin, do Centro de Memória
Durante as comemorações da 2ª Semana Santos, em 2019, o Memorial das Conquistas de Vila Belmiro passou a expor o troféu conquistado em 29 de março de 1956, do primeiro título internacional da história do Santos. Resgatado, identificado e restaurado, a Deusa Alada, como ele ficou conhecido, ocupa, desde então, lugar de destaque no vasto acervo de conquistas do clube.
Em março de 1956 o Santos ainda não contava com seu maior ídolo, Pelé. Contudo, já dava mostras de que estava entre as grandes equipes do Brasil e do continente. Naquele início de ano, o Peixe levantara a taça de campeão paulista de 1955 e foi um dos cinco clubes do Estado que disputariam, ao lado do uruguaio Nacional e dos argentinos Boca Juniors e Newell’s Old Boys, o título da fase internacional do Torneio Roberto Gomes Pedrosa, nome oficial do Rio-São Paulo.
Os clubes cariocas tentaram adiar a competição para o segundo semestre do ano, alegando que seriam prejudicados com as convocações da Seleção Brasileira que disputaria o Campeonato Sul-Americano no mesmo período. Os paulistas se recusaram, justificando que a competição já fazia parte do calendário nacional e um adiamento comprometeria a receita dos clubes. A Confederação Brasileira de Desportos intercedeu a favor dos paulistas e os cariocas retiraram-se da competição. O Torneio Roberto Gomes Pedrosa desse ano foi disputado apenas por paulistas e considerado sem efeito como um Torneio Rio-São Paulo.
Na fase internacional, pelo regulamento, as equipes brasileiras Santos, Palmeiras, Corinthians, São Paulo e Portuguesa enfrentariam apenas as estrangeiras, e a brasileira e a estrangeira mais bem classificadas disputariam a final.
A Vila Belmiro foi o palco dos três jogos classificatórios do Santos. Em um sábado, 10 de março, o Alvinegro Praiano venceu o Newell’s Boys por 4 a 2, sem sustos. Vasconcelos foi o melhor em campo e autor de um gol. Pepe marcou duas vezes e Negri mais uma.
Na segunda partida, dia 19, o Santos enfrentou o Boca Juniors. Era a estreia do veterano Jair Rosa Pinto. A chuva castigou o campo e os argentinos, melhores, abriram uma vantagem de 2 a 0. No segundo tempo, quando a chuva parou e o gramado secou, o Alvinegro virou para 3 a 2, com gols de Pepe, Vasconcelos e Pagão. Faltava enfrentar o Nacional, tão credenciado que seria tricampeão uruguaio em 1955/56/57. Mas aí surgiu uma malandragem nos bastidores que favorecia o Corinthians.
Até ali os dois alvinegros estavam empatados em pontos ganhos, com apenas um gol de vantagem para o Santos. Mas ambos ainda tinham uma partida a fazer. O inaceitável é que, enquanto o Alvinegro Praiano enfrentaria o Nacional no dia 22 de março, o da capital só jogaria contra o Boca Juniors no dia 27, portanto já sabendo de quanto precisaria vencer para superar o saldo santista.
Porém, confiante, o Santos foi para o jogo. Nem mesmo o reforço dos campeões sul-americanos Leopardi e Ambrois, da Seleção Uruguaia, fez o Nacional segurar o ímpeto santista. Depois de um primeiro tempo disputado, em que o Santos conseguiu apenas a vantagem mínima, com um gol contra de Leopardi, na segunda etapa a porteira abriu de vez: Pagão, aos seis e aos 24 minutos; Alfredinho e Urubatão completaram os, quem diria, 5 a 0 sobre o campeão uruguaio!
O Corinthians venceu o Boca por 4 a 1, mas, com três gols de saldo a menos que o Santos, ficou fora da decisão. Dos estrangeiros, o melhor foi o Newell’s Old Boys, e assim Santos e Newell’s decidiram o título em partida única, no Pacaembu, na noite do dia 29 de março, uma quinta-feira.
O técnico Lula escalou o Peixe com Manga, Hélvio (depois Cássio) e Feijó; Ramiro, Zito e Urubatão; Alfredinho (Sarno), Jair Rosa Pinto, Pagão (Del Vecchio), Vasconcelos e Pepe. O treinador José Ramos optou por Masueli, Griffa e Coronel; Mastrogiuseppe (depois Bovery), Sanguinetti e Etchevarria; Nardiello, Picot, Rocha (Hernandez), Reinozo (Carranza) e Urquiza (Donelutti). O britânico Harry Davis foi o árbitro.
O Santos era o Brasil e muitos paulistanos foram ao Pacaembu torcer para o time das praias. Pela primeira vez a imprensa esportiva paulistana parecia se curvar a uma equipe superior aos grandes da capital. Mesmo o populista tabloide Mundo Esportivo, em sua apresentação da final, se rendeu ao belo futebol e parecia antever a formação de uma equipe vitoriosa e os anos de ouro do Santos.
Todas as previsões se confirmaram. Bastante ofensivo, o Santos definiu o jogo e o título em um intervalo de 10 minutos: aos 29 Pagão abriu o marcador, aos 35 Pepe ampliou e aos 39 Vasconcelos fez o terceiro. No início do segundo tempo, Pagão, de pênalti, fez o quarto. O Newell’s diminuiu com Picot e depois Hernandez, mas Del Vecchio, que entrara no lugar de Pagão, marcou o quinto aos 36 minutos, definindo a vitória santista por 5 a 2 e o título do torneio.
A façanha fez a imprensa olhar o Santos de outra forma. Não se tratava apenas de mais um fenômeno regional. O Mundo Esportivo chegou a definir o time como “uma verdadeira academia de futebol”. Ofensivo, técnico, com muitos jogadores de alta qualidade, o Santos representava um alento para o combalido futebol brasileiro que dera vexames tanto na Copa do Mundo de 1954, como no Sul-americano de 1956.
Os números do time no seu primeiro título internacional mostraram isso: em quatro jogos, o Santos marcou 17 gols, média de 4,25 gols por jogo. O centroavante Pagão foi o artilheiro, com cinco gols, seguido por Pepe, com quatro, e Vasconcelos, com três.
Picot fizera testes na Vila
Um detalhe desses dois confrontos entre Santos e Newell’s Old Boys é que o meia atacante Picot, um dos destaques do adversário, negro e parecido fisicamente com Pelé, tinha feito testes no Santos em 1954, após a primeira excursão do Alvinegro ao exterior, mas não foi aprovado. Picot era técnico, tinha alguma habilidade, mas foi considerado muito lento para compor o excelente meio campo santista.
Tragédia em Santos
Os santistas que fossem procurar notícias do primeiro título internacional do clube, conquistado na noite anterior, na capital paulista, só iriam encontrar informações sobre a catástrofe provocada pelas fortes chuvas que se abatiam sobre Santos, a ponto de causar desmoronamentos, interditar o cassino e suspender o serviço de bondes para o Monte Serrat.
As tragédias da chuva foram destaque na imprensa brasileira e desviaram a atenção de uma conquista fundamental. Campeão paulista de 1955, o Santos mostrava, com o título do Torneio Internacional Roberto Gomes Pedrosa, que estava no mesmo nível dos grandes times do continente. Isso, antes de ser bicampeão estadual, em 1956, e antes mesmo de contar com Pelé.
Em Santos, os torcedores se esqueceram por um momento da angústia e das lágrimas provocadas pela chuva e se alegraram com o sucesso do grande time da cidade, que começava ali a sua incomparável jornada internacional.