Centro de Memória
Naquele início dos anos 60 um vírus da beleza já se espalhava pelos estádios do mundo e Santos era o epicentro da epidemia. Da cidade praiana nascia o futebol pra frente, repleto de dribles, gingas, tabelas e arremates com todos os efeitos e forças. O surto se tornou incontrolável a partir de 19 de abril de 1960, uma terça-feira, em que em um jogo sem grandes expectativas, pelo Torneio Rio-São Paulo, reuniu os cinco elementos do verso dodecassílabo mais recitado no futebol: Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe.
Naquele dia um público inferior a novecentas pessoas foi assistir a Santos e Portuguesa de Desportos, no Pacaembu. A Lusa, na época também um time grande, abriu o marcador com Ocimar. O Santos virou no segundo tempo, com gols seguidos de Zito e Ney, mas Odorico empatou aos 30 minutos e assim terminou o jogo. O detalhe histórico foi a entrada de Mengálvio no lugar de Ney, o que colocou, pela primeira vez, os cinco cavaleiros do Ataque dos Sonhos em campo.
Porém, foram necessários mais dez jogos, três no Brasil e sete na Europa, para que o técnico Lula decidisse iniciar uma partida com os cinco como titulares. Hoje isso pode parecer uma heresia, mas a verdade é que o Santos tinha tantos bons atacantes, que encontrar a formação ideal não era fácil. Para cada posição, com exceção de Pelé, havia outro jogador tão bom quanto o titular.
Na ponta-esquerda havia o carioca Tite, 29 anos, que tanto podia armar as jogadas como concluir a gol. Técnico, experiente e versátil, ele também podia atuar em outras posições do ataque. Viera do Fluminense no início dos anos 50 e se tornara fundamental no Santos bicampeão paulista em 1955/56. Chegou a fazer três jogos pela Seleção Brasileira em 1957. No Alvinegro Praiano faria 475 jogos marcaria 151 gols.
O habilidoso Pagão, 25 anos, que Coutinho considerava o seu espelho como centroavante, só não era titular quando estava machucado, o que ocorria sempre, a ponto de ser apelidado de “Canela de Vidro”.
Também para o comando do ataque e para a meia havia o tarimbado Ney Blanco. Depois de começar no infantil da Portuguesa Santista, Ney vestira as camisas de Jabaquara, Fluminense, São Paulo, Palmeiras… Enfim, era um jogador que, quando escalado no lugar de Mengálvio, não decepcionava.
Para a meia, Lula contava, ainda, com o exímio lançador e cobrador de faltas Jair Rosa Pinto, mas o carioca de Quatis já tinha 39 anos e não atuava mais em todas as partidas. Além desses, havia aquele que era o titular da ponta-direita naquele início de 1960: o descendente de italianos Angelo Sormani, de 21 anos, um atacante habilidoso e ambidestro nascido em Jau, que em 1961 seria contratato pelo Mantova e a partir daí faria fama no futebol italiano.
Com o tipo físico e o estilo de jogo parecidos com o do famoso Julinho Botelho, Sormani marcou um gol a cada dois jogos pelo pequeno Mantova e foi chamado pelos italianos de “Il Pelé Bianco”. Em 1963 a Roma o contratou por 500 milhões de liras, um recorde na Itália. De 1965 a 1970 defendeu o Milan e teve excelente atuação na final do Mundial Interclubes, contra o Ajax, marcando um gol em jogada pessoal e dando uma assistência perfeita na vitória de 4 a 1. Natualizado, fez sete partidas pela Seleção Italiana.
Quando Sormani foi para a Itália, entretanto, em meados de 1961, o rápido e driblador Dorval já era o preferido de Lula para vestir a camisa sete; o clássico maestro Mengálvio não tinha concorrentes na oito; o hábil, cerebral e oportunista Coutinho, alma-gêmea de Pelé, era o dono da nove, e Pepe, com o seu canhão, havia se apoderado da onze.
Harmonia perfeita em busca do gol
Como foi dito no começo deste artigo, só dez jogos depois de atuarem juntos, naquele empate com a Portuguesa, é que os cinco integrantes da linha mais decantada do futebol iniciaram uma partida. Isso ocorreu na noite de 7 de junho de 1960, uma terça-feira, na estreia do Santos no Torneio de Paris contra o Stad Reims, da França, vice-campeão europeu de 1956 e 1959.
Cerca de 40 mil espectadores lotaram o Parc des Princes para apreciar o espetáculo. E nele foi possível notar que Mengálvio regia o quarteto dianteiro com a calma e a certeza dos grandes maestros. Dorval, como impulsionado por um conjunto irrefreável de violinos, abria espaços vertiginosos pela direita; Pelé, obviamente o primeiro solista, navegava por todos os acordes e dialogava com Coutinho do grave ao agudo, em uma velocidade que passava do andante ao allegro à medida que se aproximavam da área adversária. E a Pepe ficava reservada a explosão de bumbo, marimba e tímpanos que encerravam muitas estrofes.
O Santos venceu aquela partida de sonho por 5 a 3. Coutinho, de apenas 16 anos, fez três gols. Aos cinco minutos de jogo Pelé driblou cinco jogadores em um espaço de oito metros e fez um gol que parece mentira, mas pode ser checado no Youtube. Dois dias depois a orquestra, ou melhor, o Santos derrotou o Racing Paris, bicampeão do torneio, por 4 a 1, e se tornou campeão de Paris pela primeira vez.
Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe iniciaram 97 partidas pelo Alvinegro Praiano, das quais obtiveram 68 vitórias e marcaram 314 gols, média de 3,23 gols por jogo. Nos três anos em que mais atuaram, entre 1961 e 1963, fizeram 74 jogos e marcaram 254 gols. Destes, Pelé marcou 118; Coutinho, 79; Pepe, 57; Dorval, 30 e Mengálvio, 11 (os cinco também atuaram, juntos, em três jogos da Seleção Brasileira).
O quinteto espalhou o vírus do futebol bonito e ofensivo por 18 países das Américas, Europa, África e Oriente Médio. No Brasil, jogou 47 vezes; na França, nove, e na Itália, oito. Os três estádios em que mais se apresentou foram: Pacaembu, 17 jogos; Vila Belmiro, 10, e Maracanã, nove.
Quando se busca as causas que originaram uma linha ofensiva ao mesmo tempo tão harmoniosa e mortal, é impossível não destacar as qualidades técnicas e as personalidades complementares de seus personagens. Mas também não se pode esquecer que, acima de tudo, eram amigos, vizinhos da mesma cidade, parceiros dentro e fora do campo, aliados nos concertos, às vezes dramáticos, dos campos de futebol.