Odir Cunha, do Centro de Memória
A imprensa brasileira destacava campanha do piloto Émerson Fittipaldi, que caminhava para mais um título mundial na Fórmula 1, e não deu oa devida atenção a mais um feito incomparável de Pelé: na vitória de 2 a 0 sobre a Universidad Unam, em Chicago, em 2 de julho de 1972, o Rei do Futebol chegava a mil gols apenas em jogos pelo Santos.
O gol histórico ocorreu aos 44 minutos do primeiro tempo, e aos três minutos do segundo Pelé já fez mais um, definindo a vitória santista sobre a equipe mexicana. Aos 31 anos o camisa 10 de ouro ainda estava no auge e somava oito gols nas últimas três partidas do Santos nos Estados Unidos.
O jogo fez parte de uma excursão que começou em 26 de maio, em Tóquio, com a vitória de 3 a 0 sobre a Seleção Japonesa. Pelé, duas vezes, e Jáder marcaram os gols santistas admirados pelo público de 65 mil pessoas que lotou o Estádio Olímpico, entre eles a família imperial japonesa.
Depois do Japão o Santos se apresentou em Hong Kong, Coréia do Sul, Tailândia, Austrália, Indonésia, Estados Unidos, Canadá e México. Foram 17 vitórias consecutivas, que deram ao clube a cobiçada Fita Azul, prêmio aos clubes brasileiros com as mais longas excursões invictas no exterior.
Como se sabe, Pelé fez 1.282 gols em sua carreira, em uma época de grandes torneios e confrontos internacionais tão ou mais importantes do que os jogos de competições federadas. Se hoje o Santos e o futebol brasileiro são tão conhecidos e admirados no mundo, o talento, o carisma e a ousadia de Pelé têm muito a ver com isso.
O menino que sacudiu o complexo de vira-latas
O jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues, que usava óculos de lentes grossas e não enxergava bem à distância, curiosamente foi o primeiro a perceber a real dimensão daquele menino de 17 anos que tinha desmontado a defesa do América carioca em um domingo de Maracanã, 26 de fevereiro de 1958, quatro meses antes da Copa da Suécia.
Habilidoso, endiabrado, irresistível, Pelé marcou quatro gols na vitória santista por 5 a3 pelo Torneio Rio-São Paulo. Nelson Rodrigues, à época colunista de Manchete Esportiva, produziu uma crônica imortal na edição de 8 de março de 1958, intitulada “A Realeza de Pelé”. Nela, o insuperável e visionário cronista afirmava:
Verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais.
Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis.
O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola, e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento.
Põe-se acima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível na formação de qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de ninguém.
Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e mesmo insolente que precisamos. Sim, amigos – aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os adversários uns pernas de pau.
Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós.
Hoje, faz falta ao futebol brasileiro essa confiança insolente de se sentir o melhor do mundo. Não se diria que faltam Reis Pelés nos nossos campos, pois seria pedir demais, mas nem mesmo príncipes, duques, marqueses e condes andam por aqui. Perdeu-se a nobreza da mais popular arte brasileira. Da mesma forma, faz muita falta, atrás dos teclados, quem possa enxergar o futebol com a mente lúcida e o coração aberto, como mestre Nelson Rodrigues.