Por Guilherme Guarche, do Centro de Memória
O primeiro jogo entre clubes profissionais no Brasil foi um amistoso disputado na Vila Belmiro, num domingo, 12 de março de 1933, entre o Santos e o São Paulo, na época conhecido como São Paulo da Floresta. No dia seguinte morreu Urbano Caldeira, o patrono do Santos. Bem, essa é uma longa história…
Notícias frequentes de que o futebol profissional seria implantado no Brasil começaram a ser divulgadas em 1931. Cientes de que poderiam ter um futuro melhor nessa profissão, vários jogadores deixavam a pátria, indo jogar em países onde o profissionalismo já era uma realidade, como em países da Europa e os sul-americanos Uruguai e Argentina.
O falso amadorismo já era um fato concreto no Brasil. Disfarçava-se a verdadeira condição do atleta, que recebia dinheiro por fora. Os craques brasileiros passaram a sofrer o assédio de clubes estrangeiros. Os europeus, principalmente os italianos, fizeram inúmeras investidas sobre os filhos de imigrantes (os oriundi), com o objetivo de levar os melhores jogadores brasileiros.
Muitos jogadores tinham contrato particular com os clubes que defendiam e por isso não puderam aproveitar a oportunidade de jogar fora do Brasil. A Federação Internacional de Futebol (FIFA) só permitia a transferência de jogadores que não tinham contrato firmado.
O futebol paulista ficou abalado, porque essa debandada ocorreu entre os jogadores mais jovens e promissores. Os veteranos, apesar de mais famosos, ficaram por aqui, como Feitiço, Friedenreich e Petronilho.
Os dirigentes da Associação Paulista de Esportes Atléticos (APEA) reuniram-se com a Liga Carioca de Futebol (LCF) e resolveram adotar o profissionalismo em 1933, ao mesmo tempo em que assumiam o compromisso de deixar a Confederação Brasileira de Desportos (CBD).
Foi o primeiro passo para a implantação do futebol profissional no Brasil. Nas reuniões, as duas entidades estaduais firmaram um acordo pelo qual por três anos ficava proibida a transferência de jogadores (profissionais ou amadores) sem a devida autorização do clube de origem. Com isso, impediu-se o temido êxodo de atletas e o enfraquecimento dos clubes.
No Rio de Janeiro essa transição não foi tão fácil. Fluminense, América, Bangu e Vasco aderiram de imediato à nova situação, mas o Flamengo só se tornou profissional um pouco mais tarde e o Botafogo continuou “amador” por mais alguns anos.
Os clubes profissionais de São Paulo e Rio de Janeiro criaram a Federação Brasileira de Futebol, enquanto a CBD continuava dando as ordens entre os amadores. O grande triunfo da CBD é que ela era filiada à FIFA, enquanto a outra entidade, não. A paz e o consenso no futebol brasileiro só voltaram a reinar no final da década da 1930.
Como já foi dito, um amistoso entre Santos e São Paulo da Floresta, em 12 de março de 1933, um domingo, na Vila Belmiro, marcou o início do profissionalismo no Brasil. Friedenreich, do São Paulo, marcou o primeiro gol do futebol profissional brasileiro e o time da capital venceu por 5 a 1. No Rio de Janeiro, o primeiro jogo profissional só foi acontecer 20 dias depois, em 2 de abril, entre o Vasco e o América, duelo vencido pelos vascaínos por 2 a 1.
Durante o regime amador o Santos disputou 478 partidas, tendo vencido 272 (56%), empatado 80 (18%) e perdido 126 (26%), marcando 1.442 e sofrendo 890 gols. Os santistas que mais vezes balançaram as redes adversárias nesse período foram: Feitiço (215), Araken Patusca (158), Camarão (139), Ary Patusca (110) e Siriri (82).
O último gol do Santos no período amador foi marcado pelo atacante Raul Cabral Guedes, o quarto da goleada de 4 a 1 em um amistoso com o Ypiranga, na Vila Belmiro, em 12 de fevereiro de 1933. Naquele domingo, além de Raul Cabral, marcaram para o Santos Victor Gonçalves, Logu e Mário Seixas. Lalá fez o único gol do time da capital.
Detalhes do confronto histórico
O craque consagrado Arthur Friedenreich conseguiu a primazia de marcar, aos oito minutos de jogo, o primeiro gol no futebol profissional no Brasil. Aos 46 minutos do primeiro tempo Araken Patusca ampliou para o São Paulo da Floresta. No início do segundo tempo, Luiz Lopreto, o Logu, diminuiu para o Santos aos cinco minutos, mas Waldemar de Brito marcou mais dois gols e Araken fez o quinto do visitante no último minuto da partida que pôs fim ao “amadorismo marrom” e fez o futebol brasileiro dar um passo decisivo rumo à modernidade.
Nesse jogo o técnico José Loureiro armou o Santos com Athié, Garcia e Meira; Waldemiro, Bisoca (Dinão) e Alfredo; David, Armandinho (Victor Gonçalves), Catitu (Strauss), Mário Seixas e Logu. O São Paulo da Floresta, escalado pelo técnico Clodo, jogou com Moreno, Sylvio Hoffmann e Iracino; Ferreira, Zarzur e Orozimbo (Fafa); Patrício, Waldemar de Brito, Friedenreich, Araken e Onofre. A arbitragem foi de Antônio Sotero de Mendonça.
Um detalhe que não pode passar despercebido nessa simbólica partida é que foi a partir desse encontro entre santistas e são-paulinos que o torcedor do time praiano passou a adotar o apelido de “peixeiro”. Numa tentativa de ofender os adeptos do Alvinegro Praiano, os torcedores do time da capital os chamaram de ‘peixeiros”. Como resposta, ouviram dos santistas: “Sim, somos peixeiros com muita honra”. E assim ficou.
Outra curiosidade do confronto é que no time do São Paulo da Floresta jogaram três atacantes que tiveram, ou teriam, estreita ligação com o Santos. O primeiro, Waldemar de Brito, que 23 anos depois traria para a Vila Belmiro o garoto Pelé, o maior jogador de futebol de todos os tempos.
O segundo, Arthur Friedenreich, considerado o “rei do futebol” na época amadora, que atuou com a camisa do Alvinegro em cinco oportunidades. E o terceiro, Araken Patusca, nascido para o futebol na Vila Belmiro, que ganhou na França o apelido de “Le Danger” (O Perigo) e que, em 1935, ajudaria o time santista a conquistar o seu primeiro título paulista.
A morte do patrono santista
Quando, por volta das 20h15 daquela segunda-feira, 13 de março de 1933, o telefone tocou na sede social e administrativa do Santos, na rua Itororó, 27, e uma voz trêmula comunicou que Urbano Caldeira acabara de falecer, um silêncio profundo tomou conta do ambiente. Os sócios e dirigentes presentes no local não quiseram acreditar que a notícia fosse verdadeira. Alguns duvidaram, pensando tratar-se de um trote.
Mas a verdade é que Urbano Villela Caldeira Filho, o catarinense nascido em Florianópolis tão querido pelos santistas, tinha partido. Os amigos que o acompanhara durante a enfermidade julgavam tratar-se de uma simples gripe, contraída durante o Carnaval carioca. No entanto, o quadro evoluiu para a pneumonia fatal. Urbano tinha apenas 42 anos.
Realizado na própria casa do grande líder santista, à rua João Ramalho, 2, Praia do Gonzaguinha, São Vicente, o velório recebeu mais de uma centena de amigos e curiosos que foram dar o adeus final ao homem que dedicou sua vida em prol do seu clube querido, o Santos Futebol Clube.
O sepultamento, no Cemitério do Paquetá, em Santos, atraiu uma multidão que acompanhou em silêncio o cortejo fúnebre pelas ruas da cidade. Na sacada de honra da sede do clube, a bandeira do Santos tremulava em uma última saudação ao homem que amou como poucos amaram o Santos, sua única paixão durante toda a vida.
Urbano se filiou ao Santos em 27 de janeiro de 1913, uma segunda-feira. Aos 21 anos fora aprovado em concurso para escriturário e se mudou para São Paulo, e depois foi transferido para trabalhar na alfândega de Santos.
Tipo atlético, amante dos esportes, Urbano começou no Santos atuando como atacante, depois passou para zagueiro. Jogou ao todo 43 partidas pelo time, marcando apenas dois gols. Sua última partida com a camisa Alvinegra foi na estreia de Friedenreich na equipe do Paulistano, no Jardim América, São Paulo, em 21 de abril de 1918. Naquele domingo, em jogo válido pelo Campeonato Paulista, o Santos sofreu uma derrota indigesta pelo placar de 7 a 3.
Antes mesmo de parar de jogar, Urbano acumulou as funções de jogador e técnico nas primeiras partidas do inexperiente time no Campeonato Paulista. Em seguida, assumiria cargos diretivos no clube.
Sua carreira como dirigente santista começou com o cargo de primeiro secretário, em 1914. Depois, foi vice-presidente na gestão de Flamínio Levy, em 1917, e nesse mesmo se tornou o primeiro tesoureiro. Em 1920, na gestão do presidente Agnello Cícero de Oliveira foi novamente primeiro secretário, tornando-se secretário-geral em 1921.
Em 1922, na gestão de Armando Lichti, assumiu a vice-presidência, até que na gestão do presidente Guilherme Gonçalves tornou-se diretor-geral de esportes, cargo que ocupou, com bastante desempenho, de 1925 até 1932, ano em que renunciou e se afastou do clube, magoado por não concordar com a situação política vivida na entidade.
Enquanto residia na rua São Leopoldo, no “Bairro Chinês”, poucas vezes regressava à casa para repousar. Ficava na sede do clube, embevecido com aquele ambiente que era também um pedaço do seu coração. Deixava-se estar numa poltrona, ali adormecia, exausto de trabalhar, de organizar aqui, de projetar um plano acolá, de redigir um ofício, de colocar os papéis em ordem, de dar um cunho de perfeição a tudo quanto estivesse sob sua direção e guarda.
Durante os anos em que serviu ao Santos como diretor-geral de esportes o time viveu sua melhor fase no futebol amador. Foi ele quem orientou a equipe no vice-campeonato de 1927, quando o título paulista só não veio porque o Santos foi muito prejudicado pela arbitragem na derrota final para o Palestra Itália, na Vila Belmiro, por 3 a 2. No entanto, aquela equipe se consagrou no futebol nacional e até hoje é reverenciada como o “Time do ataque dos 100 gols”.
Com Urbano à frente o Santos inaugurou o estádio de São Januário, do Vasco da Gama, vencendo o anfitrião por 5 a 3, em 21 de abril de 1927, um domingo ensolarado no Rio de Janeiro em que o então maior estádio das Américas recebeu o presidente da República e altas personalidades. Além de 1927, o Santos também foi vice-campeão paulista em 1928, 1929 e 1931, e terminou o campeonato de 1930 em terceiro lugar.
O time orientado por Urbano Caldeira era equilibrado, mas sua maior força estava no ataque. Na linha ofensiva se destacavam dois goleadores que também defendiam a Seleção Paulista e a Brasileira: Feitiço e Araken Patusca, este lançado na equipe principal.
O boêmio amante das serestas no Largo do Rosário recebeu de seu amigo Ricardo Pinto de Oliveira uma justa homenagem póstuma quando, em reunião de diretoria, o seu nome foi indicado e aprovado por unanimidade para designar a praça de esportes na Vila Belmiro, e a partir de 24 de março de 1933 o estádio santista passou a se chamar Estádio Urbano Caldeira. Com muita justiça.