Noventa e um anos depois da profissionalização do futebol

Raul Estevan, do Memorial das Conquistas

Ainda ontem, todos éramos crianças. Jogávamos bola na rua, em casa, na praia ou em qualquer lugar que fosse possível. Jovens, assistíamos às grandes partidas de nossos times de coração e éramos tomados pelo fervor que é o futebol. O esporte que muda vidas, redesenha caminhos e corre no sangue brasileiro, hoje é sonho de muitos. ‘Isso não dá futuro’, os pais dizem. Todavia, as crianças se atrevem a tentar, desafiam e, vez ou outra, conseguem. Do amor, surgem grandes histórias. Mas e quando só existia o amor?

Quando tudo isso era mato, criança alguma desafiaria pai ou mãe. Futebol não parecia dar mesmo um futuro. Na realidade, o esporte era só diversão — de primeiro momento, da seleta elite nacional. Nas décadas iniciais daquilo que hoje é paixão de todos, os mantos eram vestidos majoritariamente por quem possuía dinheiro e uma certa classe social. Assim configurava-se uma fase que, até 1933, recebeu o nome de futebol amador.

Clubes ao redor de todo o mundo foram, aos poucos, abrindo suas portas para pessoas de fora das oligarquias e elite. A princípio, o futebol era também mais um dos espaços exclusivos para brancos, dado o fim recente da escravidão à época. Entretanto, nosso coração é alvinegro desde o início. Já em sua estreia, o clube praiano mostrou que o futebol deveria ser um espaço para todos, e em nosso primeiro jogo não-oficial, Anacleto Ferramenta marca o primeiro gol do Santos Futebol Clube. Era um homem negro já desafiando o sistema — a vanguarda de muitos que viriam.

Mas foram décadas de luta, exclusão e preconceito de todos os lados. Além disso, enquanto futebol amador, não havia qualquer amparo para os jovens que decidiam praticar o esporte no país. As condições precárias de jogo refletiam também a falta de incentivo financeiro. Ou seja, jogava quem queria — salários, nem pensar. Apenas no final dos anos vinte que a visão começaria a mudar, ao passo que a modernização do esporte acontecia e ganhava tração cada vez maior na Europa.

O futebol profissional se cria inicialmente lá fora. Times europeus já haviam se estabelecido para uma nova era do esporte e assim começava uma modernidade no modo de se ver futebol — para nós, bastaria seguir o ritmo natural das coisas. Ouvia-se a música tocar e muitos aqui se recusavam a dançar. O tema era constantemente debatido; e enquanto a maioria já defendia a profissionalização, ainda restava uma minoria que preferia as coisas do jeito que eram.

Charles Miller, inglês famoso por ter sido o responsável pela vinda do futebol ao Brasil, apresentou-nos esse esporte mágico lá em 1894. E então, trinta e nove anos depois, jogava-se a primeira partida de futebol profissional, no dia 12 de março de 1933. Em campo, Santos Futebol Clube e São Paulo da Floresta. A animação era muita de ambas as partes da torcida, pois o jogo já prometia ser grande. Claro, ninguém ali imaginava o tamanho do pontapé dado e o que estaria por vir nos próximos noventa anos. Era o adeus aos campos descuidados, arquibancadas tímidas e o olá para o novo mundo.

Assim, há quem diga que o dinheiro fez o futebol ser o que é. E não há nenhum problema nisso. No mundo não se erguem reinados sem ele. Com dinheiro, foi possível a construção de grandes estádios, elenco de grandes times e campeonatos de escalas mundiais. Inúmeras vidas foram alteradas ao cruzar o caminho dessa verdadeira joia tupiniquim. Sendo assim, tirado o profissionalismo, não haveríamos Rei ou Rainha — ao menos não nas televisões.

E é mágico tudo o que foi feito nos clubes brasileiros até aqui. Dar o palco para pessoas que com a bola no pé conversam com milhões não tem preço. Mas é na rua onde o futebol vive. É lá onde ele nasceu, na realidade — e se algo de ruim um dia acontecer, será lá onde ele deverá ser enterrado. A celebração da profissionalização do futebol é importante tal qual a celebração do amor das crianças pelo esporte: sem raça, dinheiro ou vaidade. No fundo, é apenas amor. Irrestrito, inocente e sincero.

Futebol profissional, amador; com ou sem dinheiro — o amor é um só, e está no sangue. Nesta data especial, podemos agradecer por tudo que construímos. Nos outros dias, a paixão borbulha tão quente como no início de tudo.

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