Memória: O emocionante texto publicado em homenagem a Urbano Caldeira

Em homenagem à memória do lendário Urbano Villela Caldeira Filho, publicamos na íntegra um bonito artigo publicado no jornal “A Tribuna”, no dia 08 de janeiro de 1950, comentando sobre o Dia de Urbano Caldeira o qual foi instituído no Santos FC, no dia 09 de janeiro de1938, quando da inauguração da herma do imortal patrono do clube santista, que faleceu no dia 13/03/1933:
“Amanhã, 9 de janeiro, comemora-se a passagem do “Dia de Urbano Caldeira” esportista símbolo do Santos Futebol Clube. Ainda que não pertencendo mais ao mundo dos vivos, é na inspiração dos seus atos que a grei Alvinegra se arremete, valorosa à busca das maiores em mais difíceis conquistas. Porque Urbano era assim. Pelo clube ia até onde não houvesse mais caminho para andar. Depois meta alcançada, o seu coração ficava em festa.
É por isso que, ao se dizer, o Santos de Urbano Caldeira tem se em mente engrandecer ainda mais o clube, torná-lo maior à vista de todos.
O 9 de janeiro – instituído ao tempo do presidente José Martins – constitui uma homenagem mais àquele que se orgulhava da sua predestinação: tudo pelo Santos Futebol Clube.
Sacrificava os afazeres profissionais, esquecia os deveres sociais, às vezes a própria família, se necessidade houvesse de consumir o tempo em trabalhos ligados à vida do Alvinegro.
Quando residia na rua São Leopoldo, no bairro “Chinês”, poucas vezes regressava a casa para repousar. Ficava na sede embevecido na admiração daquele ambiente que era também um pedaço do seu coração. Deixava-se estar numa poltrona, ali adormecia, exausto de trabalhar, de organizar aqui, de projetar um plano acolá, de redigir um ofício, de colocar os papéis em ordem, de dar um cunho de perfeição a tudo quanto estivesse sob sua direção e guarda.
Às 11 horas, Urbano acordava, tomava um copo de leite, saboreava um pedaço de pandeló no bar da esquina e rumava para a Alfândega onde era funcionário dos mais estimados. Nos escaninhos do Santos, no coração de todos quantos o conheceram está a história “desse esportista perfeito, do homem justo e honrado” como disse Francisco Palmeira Martins em discurso proferido à beira da herma que se levanta em Vila Belmiro, no dia da inauguração. O respeito para com o clube adversário constituía algo de sagrado para Urbano. Na sua concepção não existiam fracos e fortes, grandes e pequenos, e foi precisamente esse espírito de eqüidade que lhe proporcionou a particular estima dos círculos esportivos.
Em sua conhecida opinião todos eram dignos do maior conceito, a ela não poucas vezes ofereceu vitórias inesperadas ao Alvinegro nos campeonatos. Quando havia um jogo contra antagonistas considerados fracos, era nessa oportunidade que Urbano, quando diretor geral de esportes, mais alertava os seus dirigidos.
Os treinos eram intensos, as precauções maiores. Ao invés de diminuir perante os jogadores a produção do adversário em jornadas anteriores, ele a tornava agigantada, afirmava que todos tinham uma bandeira a defender, um ideal a cumprir, e a tal ponto exaltava os méritos dos contrários que o conjunto do Santos inevitavelmente entrava em campo decidido a uma luta tremenda, empregando o máximo dos esforços pela vitória.
Urbano possuía o ideal olímpico da igualdade, e o seu caráter formado dentro de tais princípios, tinha que vencer, como venceu, bronze, para a perpetuidade, o nobre brasão de “Gigante da Vila Belmiro” numa referência impressionantemente justa, exata,
Urbano Caldeira pertenceu a uma época na qual o esportista se destacava pelas suas virtudes, pelos seus méritos. Não como hoje, em que os comendadores, os abonados, são os que dão as cartas…
Dentro das suas atribuições de diretor ele despersonalizava a do amigo para ser apenas o esportista, aquele que não exigia, mas pretendia apenas ordem, disciplina e dedicação. Dese cedo o Santos preparava os fundamentos para o título que ostenta de Campeão da Técnica e da Disciplina.
Quantos campeões, quantos elementos, cujos nomes figuram no relicário de recordações do futebol nacional, não tomavam severas reprimendas, não eram suspensos por faltas a treinos? Muitos deles! E quantos por chegarem atrasados 1 minuto não ficavam à margem dos exercícios? Fosse quem fosse!
Urbano, por certo, não pertence à época em que se admite tudo, em que o jogador faltoso, longe de receber uma reprimenda, ainda recebe amáveis pancadinhas, nas costas do dirigente. E que a imprensa noticia no dia seguinte que o fulano não treinou, de acordo com a informação do mesmo dirigente, por ter enfermado…
Hoje nomeia-se o capitão do time com uma simples palavra. Um minuto antes do jogo. “Olhe você vai ser o capitão!” E o “crack” vai para o campo com o encargo desconhecendo o encargo.
Às vezes sem saber conduzir-se no desempenho de tão importante e nobre tarefa. Noutro tempo merecia as honras de capitão o mais correto, o de mais autoridade, o padrão de disciplina. E o clube a que pertencia o jogador muitos dias antes mandava expedir um ofício em termos próprios, nomeando-o e enchendo de brio e entusiasmo o destinatário.
Era uma honra possuir um ofício assim. Um dia o campo de Vila Belmiro precisava de reforma. Havia grama, mas as poças de água, em dias de chuva, o tornava impraticável. Urbano resolveu o problema mandando descarregar ali diversos carros de areia.
Loucura. Você está louco! Urbano? Onde se viu… – exclamavam em tom de censura os companheiros. A grama via morrer! Acrescentavam.
E Urbano experimentado e prudente, a todos respondia: “Não morre, estou certo. Vocês vão ver!”
Alguns dias de ansiosa expectativa e a grama não morreu mesmo. O terreno ficou nivelado, com a grama despontando vigorosa. O problema fora resolvido. Urbano vencera. Para tudo tinha um remédio, um expediente prático e econômico.
Para auxiliar o nivelamento da grama e colocá-la em proporção justa, soltava pelo campo diversos carneiros, animais que ele adorava. Um dia, entretanto, veio a lagarta e o viçoso da grama transformou-se imediatamente. Uma devastação tremenda naquilo que tão carinhosamente tratava. Urbano trouxe então dois casais de patos e a limpeza no local se fez imediatamente.
Para que os seus animais não fossem alcançados por algum indivíduo cobiçoso, mantinha um guarda permanente, o seu “Flay” um canino obediente, compreensivo, pelo qual chegou a verter algumas lágrimas.
Possuindo os mais nobres sentimentos, amigo dos animais, e das árvores. Urbano dividia com eles o tempo que lhe restava. Tudo previa e nada lhes deixava faltar.
O Dr. Guilherme Gonçalves conta um episódio enternecedor: “Duas palmeiras moças levantavam para os céus a coma rendilhada. Por exigência de arquitetura tinham de ser derrubadas. Ao coração simples de Urbano, que amava as cousas desamparadas, penalizava o sacrifício. Pensa transplantá-las e levá-las a distância, com minuciosos cuidados, ao novo seio da terra que se abre um dois buracos profundos. E são horas de inquietante desassossego as que se seguem até que a haste esguia de uma palma, para regalo do seu olhar, regozijando, brote e desponte por entre o galho viscoso das folhas. Tinha vencido mais uma vez.
A herma que se levantou em Vila Belmiro está próxima as palmeiras que o próprio Urbano plantou e transportou. Está dentro, afinal, daquela obra que ele com extremo sacrifício ajudou a erguer. E que desvario de satisfação se visse, hoje, como está transformado o campo do Santos, apontando para o céu a sua arquibancada de cimento e aço, como obra imperecível de uma geração que se inspirou nos seus mais belos exemplos!
José Martins um dos mais destacados presidentes que o Santos possui e em cuja gestão se fez justiça ao “Gigante da Vila Belmiro” levantando a herma e estabelecendo o “Dia de Urbano Caldeira” disse a 9 de janeiro de 1938: “Devemos ver nesta herma como um farol iluminado a nos apontar aquela mesma rota por ele palmilhada, a sentinela avançada e vigilante, aqui colocada como garantia de todo o valioso patrimônio social que, sendo da coletividade, também o é de cada um”.
José Martins reproduziu naquela memorável manhã esplendente de sol quando então até as palmeiras se mostravam silenciosas para ouvir palavras tão bonitas à memória do seu protetor, o justo pensamento de todos a grei Alvinegra.
O tempo passa, é verdade, mas a veneração por Urbano não abate. E é assim que, por ocasião das festas e das grandes vitórias, um homem sobe silencioso as escadarias da sede do clube, como se fora o Santos em pessoa, e lança demorado olhar para a fotografia do “Gigante da Vila Belmiro”.
Se o vento, a trepidação do edifício ou algum espanador descuidado modificou ligeiramente a posição da fotografia, as mãos carinhosas desse homem a recompõe e não tarda a ali colocar um punhado de flores. A fotografia de Urbano torna-se mais viva, mais moça, mais alegre.
Esse homem é Bilu, esportista que tem no coração duas preocupações sobrepostas a outras mais: O Santos e Urbano Caldeira.
Assim como na parte esportiva, nas festas sociais, Urbano se impunha pela sua dedicação, pelo seu elevado espírito de organização. Como ninguém, talvez.
Fundou e cuidou dos primeiros passos do “Bloco Flor do Ambiente” selecionando um grupo que constituiu todo um encantamento dos associados e da população em geral quando saia à rua ou simplesmente quando alegrava as festas do clube.
Ainda hoje, como verdadeira relíquia o Santos guarda avaramente o estandarte do “Bloco Flor do Ambiente”.
Numa das festas maiores do clube, Urbano adquiriu um terço de uma bobina de papel de “A Tribuna” (bom tempo aquele) para atavios que ele sabia, com mãos de artista consumido, disseminar para todos os cantos da sede. As tantas apareceu um fotógrafo. Um fotógrafo daquele tempo, que usava o indefectível pano preto, complemento da máquina de “tripet” por cima da cabeça. Daqueles que mandavam o cidadão parar uns 5 minutos para lhe apanhar um “instantâneo” Não havia lâmpadas, o “flash”. E descuidadamente, depois de alguns minutos postos em arranjar o aparelho e a focalização com a borrachinha numa das mãos e o depósito de magnésio na outra, pediu atenção: “Atenção, meus senhores, vai sair o passarinho” mas não saiu passarinho algum. A explosão do magnésio se comunicou ao papel branco encimado com faixas pretas e quase houve um incêndio!
O trabalho de Urbano de muitas noites, por um triz não é totalmente consumido pelas chamas! Foi um momento de tristeza e aflição para o “Gigante da Vila Belmiro”.
Urbano chegou a projetar seu nome no esporte brasileiro. Deixou de ser unicamente o esportista padrão de nossa cidade, para merecer honrarias do São Cristóvão, Boqueirão do Passeio, Fluminense e, nos últimos anos de sua carreira, chegou a membro do Conselho Técnico da Confederação Brasileira de Futebol, a entidade “master” no Brasil.
Quando em 1932, devido aos acontecimentos políticos, houve a paralisação nas atividades esportivas. Urbano retirou-se. Ficou à margem. Já não que não tratava de esporte algum na ocasião. Todo o pensamento paulista convergia para a causa constitucionalista.
Quando terminado o movimento, Bilu voltou da revolução, insistiu com Urbano para que ele voltasse à luta no Alvinegro. Pediu-lhe que retomasse o posto.
E Urbano, arredio, respondia sempre que tinha medo de recomeçar o ritmo interrompido, simplesmente, porque gostava muito do Santos. Tinha receio do próprio afeto que dispensava ao clube!
Traçando este rápido bosquejo sobre a personalidade de Urbano Caldeira, a “A Tribuna” deseja associar-se de coração ao grande dia de amanhã, um dia daqueles que também era um dos seus maiores amigos”.
Guilherme Gomez Guarche – Coordenador do Centro de Memória e Estatística

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