Odir Cunha, do Centro de Memória
Seria muita pretensão do historiador definir qual o gol mais bonito de Pelé. Ele os fez de todas as formas, dezenas deles de uma formosura ímpar. Driblando vários adversários em arrancadas irresistíveis ou em espaços exíguos; de cabeça, de ponta-cabeça, de fora da área, com toques sutis por cima do goleiro… Enfim… Mas este, marcado em 2 de agosto de 1959, contra o Juventus, na Rua Javari, é o próprio Rei quem escolhe como a sua obra mais bela.
Jogava-se o início Campeonato Paulista e o Santos já era o grande furor da competição. Nos três jogos anteriores tinha feito 18 gols, média de seis por partida. Naquele domingo, 10 mil pessoas superlotaram a Rua Javari para assistir à partida contra o Juventus, um time mediano, que terminaria a competição em décimo lugar entre 20 participantes. A renda, de 622 225 cruzeiros, foi recorde no estádio.
O Santos era um timaço, com craques na defesa e no ataque, mais no ataque, claro. Naquele dia o técnico Lula escalou a equipe com Manga, Pavão e Mourão, Formiga, Ramiro e Zito; Dorval, Jair Rosa Pinto, Coutinho, Pelé e Pepe.
Obviamente, Pelé era a grande atração. Artilheiro dos Paulistas de 1957 (17 gols) e 1958 (recorde ainda não batido de 58 gols), ele seria também o maior goleador daquele Estadual, com 44 gols. Sem contar que tinha sido o grande astro da Copa do Mundo da Suécia, em 1958, quando marcou seis gols em quatro partidas e levou o Brasil ao seu primeiro título mundial.
Porém, é bom que se saiba, naquele começo de agosto de 1959 o garoto Coutinho, de 16 anos, também despontava como um superatacante. Tinha cinco gols marcados na competição, um a mais do que o próprio Pelé.
Como foi o golaço que todo mundo diz que viu
Superior desde o início, o Santos marcou aos 23 minutos do primeiro tempo: Pelé. Voltou a marcar aos oito do segundo: Pelé. E alargou aos 27 minutos: Dorval. Mas, apesar da vantagem no marcador, o jogo era tenso. Nas arquibancadas havia se juntado uma enorme torcida a favor do Juventus. Além dos juventinos de fato, torcedores de outros clubes da capital foram apreciar o jogo e infernizar o Santos e Pelé.
Mesmo após ter feito dois dos três gols do Alvinegro, o dez do Santos continuava perseguido pela torcida adversária. Quem conhece Pelé sabe que ele crescia nos momentos de dificuldade. Se ficasse com raiva, então, jogava melhor ainda. E ele estava com raiva.
Assim, aos 42 minutos, Dorval avançou pela direita e lançou Pelé, que começaria ali a esculpir o gol perfeito. Mas aqui há muitas controvérsias. Há quem diga que ele driblou quatro jogadores, incluindo o goleiro Mão de Onça, sem deixar a bola tocar no gramado.
Na recriação cinematográfica, Pelé mata a bola já driblando o primeiro defensor. A bola dá um quique no chão antes de ele aplicar um chapéu no segundo jogador de defesa, pegar a bola do outro lado e dar um outro chapéu em um terceiro zagueiro, dominar novamente a bola, tudo isso sem ela cair no chão, matar com a coxa, dar mais um chapéu, dessa vez no goleiro Mão de Onça, e depois só cumprimentar para o gol.
Na comemoração, Pelé saiu socando o ar, como se quisesse esmurrar todos os que o provocaram e ofenderam durante a partida (lembremos que naqueles tempos injúrias racistas passavam impunes). Essa comemoração passou a ser uma das marcas do Rei do Futebol.
Testemunha ocular da jogada, o jornalista Ari Fortes, do jornal A Tribuna, descreveu assim o lance:
Aos 42 minutos ocorreu o tento joia de Pelé, que fez vibrar a grande assistência. Em manobra de Dorval e Coutinho, a pelota se ofereceu ao scrathman que, num de seus lances característicos, encobriu Homero, colhendo a bola à frente. Clóvis interveio e também foi superado com idêntico golpe. Por último, saiu da meta o arqueiro Mão de Onça e igualmente Pelé o encobriu, ficando com o arco vazio à sua disposição. Antes da aproximação de qualquer outro defensor juventino, o atacante santista lançou o corpo ligeiramente para diante e, com sutil golpe de testa, atirou a esfera às malhas.
O golaço de Pelé, como já o fizera antes e faria ainda inúmeras vezes, produziu o milagre de seduzir a todos. Enquanto ele ainda socava o ar já começaram os aplausos, que tomaram toda a Rua Javari. Reduzidos a súditos, os jogadores adversários também fizeram fila indiana para cumprimentar o atacante santista.
O gol valeu um busto de Pelé no estádio do Juventus. Passado tanto tempo, a lenda continua. Uma curiosidade desse gol é que tantos jornalistas e torcedores dizem ter visto a obra-prima de Pelé naquele 2 de agosto, que se todos estivessem dizendo a verdade o pequeno campo do Juventus, na Rua Javari, teria se transformado, naquele domingo iluminado, em um estádio bem maior do que o Maracanã.