Por Odir Cunha, do Centro de Memória
No Maracanã, o primeiro jogo da decisão da Copa Libertadores de 1963 tinha sido meio estranho. Com apenas 18 minutos o Santos já vencia por 3 a 0, com dois gols de Coutinho e um de Lima, e a torcida de 63 376 pessoas fazia a festa. Porém, nos minutos finais do jogo Sanfillippo marcou duas vezes e o resultado apertado, de 3 a 2, deixou a impressão de que seria muito difícil segurar o Boca Juniors em La Bombonera.
Na quarta-feira seguinte, 11 de setembro, o Santos entrava no estádio branco e azul do Boca aos gritos hostis de uma multidão enfurecida de 85 mil fanáticos. Os barra bravas encostados no alambrado gritavam xingamentos, injúrias raciais e difamações. E completavam: “Vivos no saldrá” (Vivos não sairão!”
Diante de tanta animosidade, nem mesmo um árbitro teoricamente neutro, como o francês Marcel Albert Bois, o mesmo que já tinha apitado no Brasil, poderia garantir a normalidade da partida. Outro fato complicador é que naqueles tempos não havia transmissão direta pela tevê, o que facilitava as “trampas” (trapaças) que se tornariam comuns em jogos da Libertadores.
A impressão que se tinha, ouvindo o alarido pelo rádio, é que o Santos estava jogado à sua própria sorte naquela caixa de bombons dos diabos. Como suportar 90 minutos de tamanha pressão e voltar de lá ao menos com o empate que lhe daria o bicampeonato da Libertadores?
O polivalente Lima, hoje funcionário do departamento de base do Santos, que nas finais daquela Libertadores atuou na meia, no lugar de Mengálvio, machucado, garante que os jogadores santistas não tinham a mesma apreensão de seus torcedores:
“Estávamos acostumados a jogar contra o Boca em outros torneios pela América do Sul. Sabíamos que seriam muito cordiais fora de campo, mas na hora em que a bola rolasse, o bicho ia pegar. Aprendemos a jogar igual a eles. Se visassem só a bola, faríamos o mesmo, mas se apelassem, saberíamos como agir”.
Pelas imagens que se tem da partida dá para ver que, desde o início, a pressão foi mesmo enorme. Numa época em que ainda não havia cartões, Pelé e Coutinho sofreram faltas que hoje provocariam a expulsão direta. Mas os santistas também entravam firme nas jogadas e monsieur Bois deixava o jogo correr.
Sem Mengálvio, o técnico Lula trouxe Lima para o meio e colocou Dalmo na lateral-direira, fazendo entrar Geraldino na esquerda. O time ficou com Gylmar, Dalmo, Mauro, Calvet e Geraldino; Lima e Zito; Dorval, Coutinho, Pelé e Pepe.
O Boca foi escalado por Aristóbolo Deambrosi com Errea, Magdalena, Orlando Peçanha e Simeone; Rattin e Silveira; Grillo, Menéndez, Rojas, Sanfillipo e González.
Que virada!
O primeiro tempo seguiu amarrado e terminou sem gols. Logo a um minuto da segunda etapa, porém, Gylmar e Mauro se chocaram ao tentar interceptar um cruzamento de Grillo, da direita, e a bola sobrou para Sanfillipo, que bateu para o gol livre e incendiou La Bombonera. O campeão mundial estava sendo derrotado!
Na época não havia saldo de gols nessas decisões, muito menos a vantagem do gols fora de casa. Uma vitória do Boca Juniors provocaria uma partida desempate. Para o Santos ser campeão naquela tarde teria de conseguir ao menos o empate.
Obter a vantagem diminuiu um pouco o ímpeto do time argentino e ao mesmo tempo empurrou o Santos para frente. Quatro minutos após sofrer o gol, marcando a saída de bola do adversário, Dorval interceptou um tiro de meta mal cobrado por Errea e tocou para Pelé, que imediatamente vislumbrou Coutinho entrando entre os zagueiros. O centroavante bateu seco, rasteiro, no canto e correu por trás da meta com o braço erguido, recebido do outro lado pelos abraços de Pelé, Pepe, Lima. Ainda faltavam 40 minutos, mas o Santos provava que não estava para brincadeira.
O jogo seguiu tenso, quase violento, e Gylmar teve de fazer grandes defesas para manter o empate. Em algumas delas, ao contrário do que se vê hoje, encaixava a bola, em vez de espalmá-la. Na frente, Pelé e Coutinho continuavam infernizando a defesa comandada pelo brasileiro Orlando Peçanha.
Aos 37 minutos, deslocado pela ponta esquerda, Coutinho seguiu com a bola, cortou para o meio e serviu Pelé, na entrada da área. Este, mesmo cercado por três adversários, jogou a bola entre as penas de Orlando e tocou na saída de Errea, marcando o segundo gol do Santos. Por um momento o estádio emudeceu e assistiu Pelé dando murros no ar como se quisesse socar todos os que o ofenderam. Outros santistas o abraçaram e todos caíram no gramado, como se estivessem em um playground.
A vitória classificou o Santos para disputar o título mundial com o Milan, o campeão europeu, em uma decisão que ficaria marcada por uma das viradas mais espetaculares do Alvinegro Praiano. Bem, mas isso é uma outra história, para outra das muitas datas marcantes da inigualável trajetória santista.