Por Odir Cunha, do Centro de Memória
Lima fez um cruzamento alto. Eu estava mais ou menos ali pela marca do pênalti. Ia chegar um pouco atrasado na bola, mas tinha de tentar, tinha de acreditar em mim. Vi quando Maldini, desesperado, levantou o pé, tentando cortar o lançamento. Eu tinha de dar tudo ali naquele lance: meter a cabeça para levar um pontapé de Maldini, correr o risco de uma contusão grave, ficar cego, até mesmo morrer, porque o italiano vinha com vontade. Agora era ele ou eu. Meti a cabeça. Maldini enfiou o pé, eu rolei de dor pelo chão. O argentino não conversou: pênalti.
O relato, que dá bem o tom dramático e heroico da finalíssima entre Santos e Milan, é de Almir Albuquerque, o Almir Pernambuquinho, 26 anos, que substituiu Pelé nos dois jogos do Maracanã que transformaram o Santos no primeiro bicampeão mundial do futebol naquela noite de sábado, 16 de novembro de 1963 (livro Eu e o Futebol, de Almir Albuquerque).
Oficialmente, o Maracanã tinha recebido 120.421 pagantes, mas a verdade é que as catracas tinham sido arrombadas e milhares de torcedores, quase todos cariocas que foram torcer pelo Santos, tomaram o maior estádio do mundo para ver, pela primeira vez, um time brasileiro ser campeão do mundo.
Na Copa de 50, como se sabe, o Brasil perdeu a final para o Uruguai naquele mesmo Maracanã, e em 1962 o Santos conquistou o mundo ao golear o Benfica, mas em Lisboa. Agora os brasileiros podiam ver e viver intensamente as emoções de uma decisão mundial.
O visionário presidente santista Athié Jorge Cury percebeu o enorme interesse que aquela final despertava e teve ousadia e coragem de levar o confronto para o Rio de Janeiro, onde o Santos, segundo o dramaturgo Nelson Rodrigues, era “o mais amado dos paulistas”. A situação, entretanto, era preocupante.
Em noite de gala do brasileiro Amarildo, que fez dois gols, o Milan havia vencido o Santos por 4 a 2, em Milão, dia 16 de outubro. O Santos lutou, Pelé marcou dois gols, Coutinho teve outro anulado pelo árbitro austríaco Ernst Habefellner, mas o certo é que o campeão europeu foi melhor naquela partida assistida por 51.957 pessoas, no estádio San Siro.
Com a derrota, o Santos teria de vencer o jogo de volta, dia 14 de novembro, para provocar uma terceira partida. O problema foi que nesse ínterim Pelé, Zito e Calvet se machucaram, o que obrigou o técnico Lula a escalar, respectivamente, Almir, Ismael e Haroldo, passando Ismael para a lateral direita e deslocando Lima para formar o meio de campo com Mengálvio.
O pranto dos deuses
Desfalques tão importantes cobraram o seu preço, e aos 20 minutos do primeiro tempo o brasileiro Mazzola e Mora já tinham construído a vantagem de 2 a 0 para o Milan. Ao terminar o primeiro tempo, na saída para o vestiário, Mazzola se aproximou de Amarildo e disse que na segunda etapa só precisariam segurar o jogo, pois o empate já lhes daria o título.
Mas quando o jornalista Oldemário Touguinhó disse a Lima que no vestiário italiano já tinham preparado uma mesa farta para comemorar o título, isso mexeu com o brio dos santistas. “Nem ouvimos a preleção, com cinco minutos de vestiário já voltamos para o campo”, lembra o curinga da Vila.
Os deuses do futebol parecem ter se apiedado dos santistas, pois um dilúvio caiu dos céus e encharcou o gramado, tornando cada disputa pela bola uma luta feroz. Determinados e empurrados por uma multidão de 200 mil pessoas, dentre elas 132.728 pagantes, o Santos mostrou uma força sobrenatural e marcou quatro gols em 22 minutos, devolvendo o placar de Milão. O título, então, seria decidido dois dias depois, no sábado.
Na Raça!
Símbolo do futebol arte, o Alvinegro Praiano, além da técnica e da disciplina, sempre cultivou mais dois valores essenciais a todo campeão: a garra e a ousadia. Aquele era o momento de praticá-los. Sem a força ofensiva de Pelé, a liderança de Zito e a experiência de Calvet na zaga, o time teria de se superar novamente para buscar o bicampeonato mundial.
Como no jogo da virada, Lula escalou o time com Gylmar, Ismael, Mauro, Haroldo e Dalmo; Lima e Mengálvio; Dorval, Coutinho, Almir e Pepe. O Milan, treinado pelo argentino Luis Caniglia, Balzarini (depois Barluzzi); Davi, Maldini e Trebi; Trapattoni e Pelagalli; Mora, Lodetti, Fortunato, Mazzola e Amarildo. Na arbitragem, o argentino Juan Regis Brozzi, considerado o melhor árbitro sul-americano daqueles tempos, auxiliado por Juan Luis Praddaude e Roberto Goicochea, também argentinos.
Lodetti, o camisa oito do Milan, deu a saída às 21 horas, tocando para Mazzola. O primeiro ataque italiano se transformou em escanteio. Mas, aos poucos, o Santos assumiu o controle e passou a criar oportunidades. Aos 18 minutos Lima acertou um chute rasteiro que passou raspando a trave. Aos 27 Almir acertou um arremate cruzado que obrigou Balzarini a uma defesa acrobática.
Aos 30 minutos ocorreu o lance do pênalti de Maldini em Almir, descrito pelo santista no início deste artigo. Os italianos protestaram agressivamente e Maldini, ao ofender e tentar agredir Juan Brozzi, acabou expulso. O jogo ficou paralisado por quatro minutos. Repórteres, fotógrafos e policiais invadiram o campo. Em meio ao tumulto, Dalmo se aproximou de Pepe, o cobrador natural de pênaltis quando Pelé não estava em campo, e pediu para bater. Pepe percebeu a confiança do amigo e consentiu.
“Era um barulho ensurdecedor, aquele povo todo gritando. Houve um desentendimento. Quando eu ia bater, dava a paradinha e o goleiro se adiantava. O árbitro mandou que eu não fizesse a paradinha e que o goleiro não se adiantasse. Fui frio e calculista, pois estava acostumado a cobrar pênaltis nos outros clubes em que joguei. Quando corri para a bola, o estádio silenciou. Mas já estava decidido. Bati no canto esquerdo do goleiro, rasteiro, e fiz o gol”.
O lateral-esquerdo Dalmo Gaspar, único jogador do time a jamais ser convocado para uma Seleção Brasileira, tinha 31 anos quando bateu o pênalti mais importante da história do Santos. Falecido em março de 2015, aos 82 anos, Dalmo afirmava que foi ele quem ensinou Pelé a cobrar pênaltis com paradinha. Seu pênalti contra o Milan e aquele que representou o Milésimo de Pelé, seis anos depois, são, realmente, bem parecidos.
O Santos manteve a iniciativa depois do gol e aos 40 minutos Coutinho fez 2 a 0, mas Juan Brozzi marcou falta no goleiro. Oito minutos além do tempo regulamentar Amarildo deu entrada violenta em Ismael, que reagiu com uma cabeçada e foi expulso. Arrependido, o santista saiu de campo aos prantos, amparado por Coutinho e o massagista Macedo.
No segundo tempo o jogo prosseguiu equilibrado até os 30 minutos, quando o Milan passou a dominar. Pepe e Almir, machucados, se arrastavam em campo e as oportunidades para o campeão europeu se sucediam.
Aos 37 minutos Mazzola avançou livre e, da marca do pênalti, chutou fraco, à direita da meta de Gylmar. Aos 44 minutos Mora passou por Dalmo e cruzou rasteiro para Amarildo. Gylmar se antecipou e fez defesa importante. Instantes depois Brozzi encerrou a partida que tornou o Santos o primeiro bicampeão mundial de clubes.
Confiante, nos últimos minutos do jogo a multidão acenava lanços brancos e cantava “Está chegando a hora”. Ao ouvir o apito do árbitro, os jogadores santistas começaram a pular, carregaram Almir nos braços e se organizaram em uma volta olímpica. Ismael voltou a campo, sem meias, e chorava copiosamente enquanto erguia as mãos para o público, repetindo o gesto dos companheiros.
Para o premiado jornalista carioca Ney Bianchi, “na linguagem do homem da arquibancada ‘o Santos venceu o Milan no peito e na raça, sem fugir do pau’. Esta foi, no Maracanã, a voz do povo e, como sempre, um pouco da voz de Deus”.
Thomaz Mazzoni, conceituado jornalista paulistano, escreveu: “Que gigante foi o Santos! Desfalcado de três de seus melhores elementos, não se perdeu, não se desorientou. Goleou na primeira partida, ganhou com espírito defensivo na segunda e eis aí que conquista em grau maior o seu Segundo Campeonato Mundial de Clubes”.
Um detalhe histórico importante é que este bicampeonato mundial representou o nono título oficial consecutivo do Santos. Hoje, em que virou hábito poupar jogadores em uma competição, a fim de preservá-los para outra mais importante, uma façanha dessas parece incrível. Mas ela realmente ocorreu. A série começou em dezembro de 1961, com as conquistas do Campeonato Paulista e da Taça Brasil/ Campeonato Brasileiro daquele ano. No ano seguinte, o do cinquentenário do clube, o Santos venceu as quatro competições que disputou: o Paulista, a Taça Brasil/ Campeonato Brasileiro; a Copa Libertadores e o Mundial Interclu bes. E e m 1963 venceu o Torneio Rio-São Paulo e repetiu os títulos da Libertadores e do Mundial. Sim, nove títulos oficiais e relevantes consecutivos, em uma proeza inédita no futebol mundial.
Quanto a Almir, símbolo da coragem e da ousadia naquela noite especial, permaneceu no Santos até 1964, jogou de 1965 a 1967 no Flamengo e em 1967 e 1968 no América carioca. Ao abandonar a carreira passou a frequentar bares em Copacabana. Morreu assassinado em um deles, o Rio-Jerez, próximo à Galeria Alaska, em 6 de fevereiro de 1973, ao defender atores do grupo Dzi Croquetes que estavam sendo ofendidos por um outros fregueses do bar. Almir agrediu um deles e, na briga, acabou morrendo com um tiro na cabeça. O assassino alegou legítima defesa e jamais foi preso.