Por Odir Cunha, do Centro de Memória
Se qualquer um de nós tivesse feito um décimo do que ele conseguiu jogando futebol, certamente já teria se vangloriado dessas façanhas milhares de vezes. Mas o gaúcho Dorval Rodrigues, que nesta quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020, comemora 85 anos de vida, apenas sorri quando alguém lembra suas proezas. E não foram poucas.
Quantos podem dizer que deram um baile em Nilton Santos, lendário lateral-esquerdo do Botafogo, além de abrir o marcador na decisão da Taça Brasil/ Campeonato Brasileiro de 1962, que o Santos venceu por 5 a 0, no Maracanã? Ou que marcaram dois gols contra o Barcelona, no Camp Nou, em partida que o Santos venceu por 5 a 1, em 1959? Ou que fizeram dois gols no primeiro jogo da decisão da Taça Brasil/ Campeonato Brasileiro de 1965, na goleada de 5 a 1 sobre o Vasco, no Pacaembu?
De 1956 a 1967, em 612 jogos, mesmo jogando ao lado de artilheiros implacáveis, o rápido e preciso Dorval marcou 198 gols com a camisa do Santos. Pode parecer uma soma modesta, comparada com os 1091 gols de Pelé, os 403 de Pepe e os 370 de Coutinho, mas é bem mais do que os gols de Sócrates (172) e Rivellino (144) pelo Corinthians; Raí (128) e Careca (115) pelo São Paulo; Ademir da Guia (154) e Evair (126) pelo Palmeiras, e Eneias (176) pela Portuguesa.
Fora os gols, Dorval se cansou de dar aos seus companheiros a oportunidade de fazê-los. Era a opção, pela direita, do Ataque dos Sonhos, mas também podia, humildemente, marcar o ponta-esquerda adversário. Crescia nos jogos decisivos e foi particularmente importante na vitória sobre o Penãrol, em Montevidéu, no primeiro jogo na final da Copa Libertadores de 1962, e também nos dois jogos contra o Milan, no Maracanã, que tornaram o Alvinegro Praiano o primeiro bicampeão mundial.
No início, enfrentou até o racismo
A brutalidade dos zagueiros foi um obstáculo pequeno comparado a outros enfrentados por Dorval no início de sua carreira. Nascido no bairro do Partenon, em Porto Alegre, em 26 de fevereiro de 1935, apenas um dia depois de Pepe, o maior ponta-direita da história do Santos começou a jogar no infantil do Internacional, time para o qual torcia, mas depois passou para o juvenil do Grêmio.
“Às vezes eu jogava na meia, às vezes na ponta, fui escalado até na ponta-esquerda. Mas era difícil um jogador de cor se firmar no Grêmio”, lembra. Então, ele se transferiu para o Força e Luz, hoje extinto, e em seguida para o Santos.
“Foi o Arnaldo Figueiredo quem me tirou do Rio Grande do Sul. Tentou me colocar no Corinthians, mas o Brandão (Oswaldo Brandão, técnico já falecido) disse que já tinha o Bataglia; no Flamengo o Yustrich (técnico, também já falecido) disse que tinha o Joel. Cheguei ao Santos no segundo semestre de 1956”.
Dorval garante que na época em que veio para o Santos estava jogando como meia-direita, mas foi na ponta-direita que ele estreou contra o Corinthians de Santo André – goleada de 7 a 1, no dia 7 de setembro –, mesma partida em que Pelé também estreou e fez o seu primeiro gol como profissional.
“Quanto cheguei o ataque era formado por Alfredinho, Álvaro, Del Vecchio, Vasconcelos e Tite. Assinei contrato em outubro de 1956. No começo de 57 o Mauro quebrou a perna do Vasconcelos e o Pelé estreou. Depois saiu o Alfredinho e eu entrei na ponta-direita”.
A condição de titular absoluto não veio logo de início, mas sua impressionante velocidade, a rapidez com que tocava a bola na corrida, o forte chute de pé direito e a disposição para também ajudar na marcação acabaram conquistando a confiança do técnico Lula, que o fixou na ponta-direita.
Suas qualidades foram imprescindíveis para muitas vitórias memoráveis. Além das já citadas, ele classifica como as melhores a goleada de 5 a 2 sobre o Benfica, em Lisboa, na decisão do Mundial de Clubes de 1962; os 4 a 2 no Milan, no Maracanã, na segunda partida da decisão do Mundial de 63; os 3 a 0 no Peñarol na finalíssima da Taça Libertadores de 1962, em Buenos Aires, e os 6 a 4 sobre a Seleção da Tchecoslováquia, no Torneio Hexagonal do Chile de 1965.
Companheiro de quarto do Rei
Como Dorval e Pelé chegaram à mesma época em Santos, acabaram dividindo o quatro na concentração do estádio da Vila Belmiro e depois na pensão da Dona Georgina, onde viviam mais uma dezena de jogadores santistas. Mesmo se tornando muito amigo de Pelé, de quem era cinco anos mais velho, Dorval conta que não era fácil conviver com ele:
“Numa época ele comprou uma bateria e ficava tocando no quarto. Era aquele barulhão. Ele tinha um temperamento muito danado. Uma vez nós brigamos e ficamos um ano sem se falar. O motivo foi uma discussão depois de um jogo com a Portuguesa que a gente estava ganhando por 2 a 0 e perdemos por 3 a 2. Ele errou e achou que os outros tinham de pedir desculpas só porque ele era o Pelé. O curioso é que a gente dormia no mesmo quarto e não se falava. Só ia se falar no campo”.
A verdade é que os jogadores costumavam pegar no pé do Dorval, mesmo sem razão. Sabiam que, quando provocado, o ponta jogava melhor. Coutinho falou sobre isso:
“O Dorval era e é o menino velho. Todo mundo brigava com ele, mesmo que ele não tivesse culpa nenhuma. Mas nós xingávamos ele mesmo assim, porque sabíamos que depois disso ele iria se enfurecer e seu futebol renderia mais”.
Dorval reagia a todas as críticas, mas respeitava Zito acima de todos. “O Pelé era famoso, mas o líder era o Zito. Ele sabia falar normalmente, sem gritar. Mesmo na hora que tinha de dar um esporro, ele dava sem ofender. Até o Pelé levava dura dele”, lembra.
Fora de campo a autoridade do técnico Lula também não era contestada. Bonachão, o técnico era muito querido por Dorval pela maneira respeitosa, quase carinhosa, de falar com o jogador.
“Ele sabia tratar a gente. Se você tinha algum problema, ele chamava para a casa dele, para conversar. Gostei muito do Lula. E ele não era só um amigo, não. Em muitos jogos que ele mexeu no time o jogo virou. Mexia e dava certo”.
Nas viagens, o boêmio Dorval dividia o quarto de hotel justamente com o jogador mais comportado do elenco: o goleiro Gylmar, que já era casado e preferia ficar lendo a sair para as noitadas, nunca rejeitadas pelo ponta.
“O Girafa era sensacional. Foi amigão. Ele sempre me respeitava, como eu o respeitava. Eu saía, chegava tarde e ele ainda estava lendo na cama”.
De tanto fazer papel de santo de casa, Dorval aceitou o convite do Racing de Buenos Aires em 1964, deixando a ponta direita do Santos para Peixinho, que veio da Ferroviária, e Sormani, que depois se transferiu para a Itália.
“Meu passe foi comprado pelo Racing, enquanto o Batista e o Luis Cláudio foram para lá por empréstimo. Mas o Racing não tinha dinheiro para me pagar e o Santos me pediu de volta. O Batista e o Luis Cláudio ficaram em definitivo”.
Depois de mais dois anos na Vila Belmiro, Dorval foi para o Palmeiras em 1967, onde permaneceu nove meses. Nesse ínterim teve uma passagem boa pelo Juventus, onde ficou apenas três meses. No ano seguinte foi para o Atlético Paranaense. Lá, ao lado de outros veteranos de prestígio, como os bicampeões mundiais Bellini e Djalma Santos, foi vice-campeão estadual e encerrou a carreira.
Seus títulos principais, todos pelo Santos, foram o Bicampeonato Mundial Interclubes e da Taça Libertadores da América em 1962/63, Pentacampeonato Brasileiro em 1961/62/63/64/65, Campeonato Paulista em 1958/90/61/62/65, Torneio Rio-São Paulo em 1969/63/64/66, além de inúmeros torneios internacionais, como Hexagonal do Chile, Torneio de Paris…
Do primeiro jogo profissional pelo Força e Luz, em 1954, até o último, pelo Atlético/PR, em 1968, Dorval cumpriu sua generosa missão de chegar à linha de fundo e cruzar para os artilheiros – geralmente Pelé e Coutinho – com extrema eficiência e dignidade. Velocíssimo, fez grandes partidas e conseguir chegar à Seleção Brasileira em uma época de notáveis pontas-direitas, como Garrincha, Julinho Botelho, Paulo Borges, Natal, Joel, Bataglia, Gildo, Buião…
Seleção Brasileira
Sua história com a sagrada camisa canarinho começou em 1956, quando foi convocado, mas, ainda inexperiente, acabou dispensado do combinado gaúcho que representou o Brasil no Pan-Americano do México e se sagrou bicampeão do torneio. O time tinha jogadores que se tornariam conhecidos, como Oreco, Chinezinho, Ênio Rodrigues e Larry.
A primeira partida de Dorval com a camisa da Seleção Brasileira só aconteceria em 10 de março de 1959, contra o Peru, na estreia da Seleção no Sul-Americano disputado em Buenos Aires. Foi a primeira exibição do Brasil depois de conquistar o título mundial na Suécia. O jogo, realizado no Estádio de Nuñes, terminou empatado em 2 a 2. Didi e Pelé marcaram para a Seleção Brasileira, que formou com Castilho, Paulinho, Bellini, Orlando Peçanha e Nilton Santos (depois Coronel); Zito e Didi; Dorval, Henrique (depois Almir Albuquerque, o “Pernambuquinho”), Pelé e Zagalo.
Nesse Sul-Americano Dorval ainda jogou contra Chile, Uruguai e Paraguai. Na final, contra os argentinos, Garrincha foi o ponta-direita. Nessa partida, cujo empate de 1 a 1 deu o título à Argentina, o juiz chileno Carlos Robles apitou o encerramento do jogo quando a bola chutada por Garrincha estava entrando na meta argentina, naquele que seria o gol da vitória brasileira.
O único gol marcado por Dorval em 14 jogos que fez pela Seleção ocorreu em 17 de setembro de 1959, na goleada sobre o Chile por 7 a 0, no Maracanã, pela Taça Bernardo O’Higgins – os outros gols foram feitos por Pelé (3), Quarentinha (2) e Dino Sani. Como Mengálvio, Dorval foi um dos titulares da mal sucedida excursão à Europa de 1963. Depois dela, nunca mais chegou a ser convocado.
Ídolo Eterno
Ao pendurar as chuteiras foi contratado pelo Baneser para coordenar uma escolinha de futebol para garotos na região Sudeste de São Paulo. No começo chegou a ter 800 alunos, mas quando o patrocinador se foi a escolinha só se manteve com o apoio de alguns pais e de Mário Medina, empresário na área de ensino que patrocinava o as aulas de 30 meninos.
A escolinha se tornou o Centro Desportivo Municipal Ferradura, na Vila Santa Catarina, onde, durante anos, Dorval usou aulas de futebol, bons modos e um churrasquinho de vez em quando para evitar que os jovens da favela ao lado descambassem para o crime. Além de trabalhar em escolinhas de futebol, Dorval foi vendedor de plásticos e técnico do time amador da Indeplast, de Diadema.
Com os mesmos 1,75m e 67 quilos do tempo em que jogava, o inesquecível ponta-direita hoje vive em Santos e está incluído no programa “Idolos Eternos”, pelo qual o clube ampara alguns de seus veteranos. Separado, é pai de Émerson Fernando Rodrigues.
Os mais próximos sabem que não podem esperar histórias eloquentes vindas de Dorval. Discreto, ele fala pouco sobre si mesmo e suas conquistas. Porém, generoso, a cada Natal não esquece de enviar um cartão aos amigos. Nele, há uma foto do jovem ponta-direita com o uniforme todo branco do Santos, olhando, confiante, para a frente, símbolo de um tempo que nunca se apagará.