Por Odir Cunha, do Centro de Memória
Estatísticas por Guilherme Guarche
Técnico e ao mesmo tempo firme e viril, o quarto-zagueiro Raul Donazar Calvet, nascido em Bagé, Rio Grande do Sul, em um sábado, 3 de novembro de 1934, chegou ao Santos no início de 1960 para fazer uma dupla de zaga perfeita com Mauro Ramos de Oliveira e dar à defesa santista a solidez necessária para tornar a equipe a melhor de todos os tempos.
Zagueiros clássicos, que sabiam cortar uma bola e sair jogando de cabeça erguida e passe preciso, o Santos já tivera alguns, como Hélvio e Formiga. Mas àquela altura o técnico Lula queria um que fizesse isso e ainda entrasse mais duro nas jogadas, não recusando até o “serviço sujo” de apelar para faltas. Então, surgiu o nome do gaúcho Calvet, revelado aos 16 anos pelo Guarany Futebol Clube, em 1951, e depois campeão estadual pelo Grêmio em 1956 e 1959.
Sério, de poucas palavras e muita personalidade, Calvet já tinha sido campeão gaúcho em 1956, aos 22 anos, quando decidiu voltar para a sua Bagé por não concordar com a insistência do Grêmio de escalá-lo no meio de campo. Sua vocação era mesmo a quarta zaga, ou o lado esquerdo da zaga, e só retornou ao Grêmio depois que lhe prometeram a posição.
Veio para o Santos no início de 1960, aos 25 anos, depois de se destacar na Seleção Brasileira que ficou em segundo lugar no Pan-americano da Costa Rica. Sua estreia no Alvinegro Praiano ocorreu em 18 de fevereiro de 1960, uma quinta-feira, em Lima, Peru, quando o Santos empatou em 3 a 3 com o Sporting Cristal, no Estádio Nacional de Lima, e ele entrou no lugar de Zito.
O curioso é que em 24 de março de 1957, três anos antes de vir para a Vila Belmiro, Calvet já tinha enfrentado o Santos, em Bagé, por um Combinado Guarani FC/GE Bagé. O amistoso terminou empatado em 1 a 1, com gols de Pelé para o Santos e do próprio Calvet, que jogava mais avançado, para a equipe gaúcha.
Contratado para atuar como quarto-zagueiro, ao lado do central Mauro Ramos de Oliveira, Calvet tornou mais consistente o sistema defensivo do Santos. Se o ataque santista era o melhor do mundo, com Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe, a defesa também seria a melhor do Brasil, com Gylmar, Lima, Mauro, Calvet e Dalmo.
Mauro e Calvet se tornaram, para a defesa, assim como Pelé e Coutinho para o ataque. O entrosamento veio naturalmente, como se já se conhecessem há anos. Em entrevista para o livro Time dos Sonhos, Calvet se lembrou da primeira vez em que jogou ao lado do companheiro – uma partida contra o Palmeiras, no Pacaembu, que terminaria sem gols, na estreia do Santos no Torneio Rio-São Paulo de 1960.
“O capitão era gente fina. Nos encontramos antes da partida e eu perguntei: ‘Quando tu sai para a cabeçada, eu vou para a cobertura?’. É isso aí, Calvet’, ele respondeu. E foram cinco anos assim”.
Cinco anos em que o Santos foi quatro vezes campeão paulista, quatro vezes brasileiro, duas da Copa Libertadores e duas campeão mundial, além de conquistar inúmeros torneios internacionais importantes. Só faltou ao zagueiro firme e forte, de 1,80m e 78 quilos, a glória de uma Copa do Mundo.
Titular em 10 jogos preparatórios, todos vencidos pelo Brasil, Calvet era nome certo na Seleção Brasileira que disputaria a Copa de 1962, no Chile, mas foi cortado à última hora pelo técnico Aymoré Moreira, também treinador do São Paulo. Assim como Aymoré, toda a comissão técnica da Seleção, a começar pelo chefe, Paulo Machado Carvalho, era do clube paulistano.
“O Aymoré me falou que precisaria levar dois jogadores do São Paulo. Como o atacante Benê teve de ser cortado por ter um sopro no coração, então resolveram levar o Jurandir no meu lugar. Fiquei chateado, sim. Não é fácil perder a vaga para uma Copa por um motivo que não é técnico” – admitiu Calvet, 40 anos depois.
Em outras palavras, Calvet foi cortado com a alegação de que o Santos já tinha muitos jogadores na Seleção. Caso Coutinho e Pepe não se machucassem e Calvet fosse titular, o Brasil entraria em campo com nada menos do que sete santistas.
De qualquer forma, ainda em 1962 o Santos daria a Calvet a maior alegria de sua carreira, ao conquistar o título mundial interclubes com a goleada de 5 a 2 sobre o Benfica, em Lisboa. Momentos após o inesquecível triunfo, o zagueiro abriu o coração ao jornalista Álvaro Paes Leme, do jornal Última Hora:
“Apesar de não haver sido campeão mundial pelo Brasil, consegui o título com o Santos. Essa oportunidade não me tiraram.”
Em 1963, após ter sido importante na vitória sobre o Boca Juniors, em La Bombonera, que garantiu o bicampeonato da Libertadores, o experiente quarto-zagueiro, machucado, não participou da decisão do Mundial, contra o Milan, no Maracanã. Como se sabe, mesmo sem ele, Zito e Pelé o Alvinegro derrotou duas vezes o campeão europeu e se tornou o primeiro clube bicampeão mundial da história.
No ano seguinte, pouco antes de completar 30 anos, Calvet teve um rompimento parcial do tendão de Aquiles durante um treino e decidiu abandonar o futebol. Um longo tratamento poderia recuperá-lo, mas preferiu voltar para Bagé, onde se tornaria presidente do mesmo Guarany em que, ainda adolescente, havia iniciado a carreira. Sua despedida do Santos mereceu palavras emocionadas do jornalista Paes Leme:
“Despediu-se do futebol paulista um futebolista que marcou a sua passagem pelas fileiras do Santos como uma legenda de bom jogador, homem correto e disciplinado. Vimos muitas vezes Raul Calvet jogar. No Brasil e no Exterior sempre foi um craque. A par de suas qualidades técnicas indiscutíveis, era também um homem de grande personalidade. Foi durante alguns anos o maior quarto-zagueiro de nosso futebol, o que não impediu que por política, depois de haver sido sempre o melhor da posição durante os jogos pré-campeonato mundial, tivesse sido cortado pelo técnico Aymoré Moreira, numa das decisões ,mais injustas e absurdas de que já tivemos conhecimento.&rdqu o;
Entre 1960 e 1964 Calvet fez 218 jogos pelo Santos e marcou um gol. “Para que ir ao ataque, com tanto atacante bom?”, dizia. Na década de 80 a revista argentina El Gráfico fez uma enquete mundial que escolheu o Santos bicampeão mundial de 1962/63 como o melhor time de futebol de todos os tempos, time de Pelé e Coutinho e de Calvet e Mauro. O gaúcho também é considerado o melhor quarto-zagueiro da história do Grêmio.
Quase anônimo na multidão, Calvet esteve em Santos em 17 de novembro de 2003 para a inauguração do Memorial das Conquistas – espaço criado justamente para perpetuar as conquistas do Santos e dos ídolos alvinegros, como ele. Menos de cinco anos depois, porém, o grande zagueiro nos deixou. Raul Donazar Calvet faleceu em 29 de março de 2008, aos 73 anos, no hospital Santa Rita, em Porto Alegre, onde estava internado devido a um câncer de esôfago.