Bi Paulista em 2007, a vitória da fé santista

Por Odir Cunha, do Centro de Memória
O santista acredita em milagres. Não que vencer o São Caetano por dois gols de diferença, no segundo jogo da final do Campeonato Paulista de 2007, fosse um resultado impossível, mas era ilógico para a maioria dos cronistas esportivos que, durante a semana, decretaram um favoritismo anormal para o time do ABC.
Era tocante, porém, ouvir os torcedores chegando ao Morumbi naquela  tarde domingo, 6 de maio, em que o título seria decidido. “Oooooo, vamos ser bi Santos, vamos ser bi Santos, vamos ser bi Santos…” cantavam os santistas, embalados por uma sabedoria que está acima dos cálculos matemáticos, pois vem do conhecimento ancestral do Santos.
Cansado de provocar milagres, o Santos não pode ser analisado sob a fria luz da razão. Fosse assim, os sábios cronistas de São Paulo estariam certos. Como acreditar que um time que não tinha marcado um gol sequer nos seus últimos três jogos, todos diante de sua torcida, faria uma diferença de dois tentos contra o forte São Caetano?
Nas semifinais, o Santos enfrentara o Bragantino duas vezes, ambas na capital – uma no Pacaembu, com um público de quase 29 mil pessoas; outra no Morumbi, com 35 mil torcedores – e nos dois jogos, em que pese o apoio do público, não conseguiu sequer um golzinho.
A seca continuou no primeiro jogo da final, contra o São Caetano, em que Luis Henrique marcou aos oito minutos de jogo e Somália, de pênalti, ampliou aos 35 minutos do segundo tempo. A imagem deixada por essa derrota foi arrasadora: a tevê passou a semana repetindo o pênalti amalucado cometido pelo goleiro Fábio Costa e os bons lances do adversário, entre eles as jogadas do centroavante Somália, que se tornaria artilheiro do campeonato, com 13 gols.
O momento do São Caetano era bem melhor. Desde o início daquela década, na verdade, o Azulão vinha mantendo uma performance que fazia alguns preverem que se tornaria mais um grande do Estado. Segundo colocado do Campeonato Brasileiro em 2000 e 2001, vice da Copa Libertadores em 2002 e campeão paulista em 2004, o time já estava acostumado a decisões e, ainda segundo os pragmáticos, não teria grande dificuldade de parar o pouco operante ataque santista.
Com Rodrigo Tabata, Jonas e Marcos Aurélio, apoiados por Rodrigo Souto, Cléber Santana, Zé Roberto e o lateral Kléber, o Santos tinha até um time acima da média do meio campo para a frente, mas não havia o chamado artilheiro.
Hoje sabemos que o atacante Jonas, à época com 23 anos, se tornaria um excelente jogador, a ponto de virar ídolo do Grêmio e do Benfica, artilheiro do Campeonato0 Brasileiro de 2010, com 23 gols, e ser escolhido como o melhor jogador do futebol português em 2017. Mas naquele jogo decisivo de 6 de maio de 2007 não havia um jogador no Santos que desse ao torcedor a certeza do gol.
No entanto, como se o elenco, qualquer que fosse, não tivesse tanta importância, e sim a eterna e atrevida alma santista, o torcedor foi em peso ao Morumbi, lotado com 59 063 pagantes, e mesmo antes de o árbitro José Henrique de Carvalho apitar para o início da decisão, já estava fazendo ecoar pelo estádio o pedido para que o Santos se tornasse bi, repetindo uma façanha que não se via desde 1968.
Perfilados para o início do confronto, lá estavam Fábio Costa, Maldonado, Adaílton, Ávalos e Kléber; Rodrigo Souto, Cleber Santana (depois Carlinhos), Pedrinho (Rodrigo Tabata) e Zé Roberto; Jonas (Moraes) e Marcos Aurélio. O São Caetano, dirigido por Dorival Junior, tinha Luiz Silva Paulo Sérgio, Maurício, Thiago e Triguinho; Luis Alberto, Glaydson (depois Ademir Sopa), Canindé (Galiardo) e Douglas; Luiz Henrique (Marcelinho) e Somália.
Escrito nas estrelas
A impressão que se tinha, ao ver, das arquibancadas, aquela montanha ansiosa de cabeças, era de que mesmo que o Santos estivesse há 10 jogos sem fazer gols, ou 50, 100, ainda assim ganharia aquela partida pela diferença necessária e sairia dali campeão. Isso não se explica. Sente-se. Mas nem todos os astros convergiam na mesma direção. O goleiro do São Caetano, Luiz Silva, não parecia disposto a deixar escapar o título.
Em um contra-ataque Kléber deu a Zé Roberto, que enfiou lindo passe para Marcos Aurélio. Este penetrou livre, pela meia esquerda da área, mas o tiro saiu fraco e Luiz Silva apenas cobriu o canto. Minutos depois, em lance parecido, Zé Roberto penetrou e bateu cruzado e rasteiro, mas dessa vez a bola entraria não fossem as malditas pontas de dedo de Luiz Silva. Veio o escanteio, porém…
Apartado do bolo que se formou em frente à meta, o zagueiro Adailton esperou a cobrança de Pedrinho, pela direita, e só após divisar a direção da bola se adiantou e saltou, antes de quatro zagueiros do São Caetano e antes mesmo do então inexpugnável Luiz Silva. Goooool! Meio milagre estava feito.
A pressão continuava. Jonas acertou a trave, Zé Roberto caprichou no chute de fora da área e a bola cairia, mansamente, no canto esquerdo do arco se nele não estivesse, voando como uma ave de mau agouro, com suas garras longas e afiadas, o inesgotável Luiz Silva.
Veio o segundo tempo e se percebeu que as jogadas de ataque agora começariam por Kléber, na esquerda, um especialista em cruzamentos. Boa opção, pois na troca de passes, pelo meio, estava quase impossível penetrar no ótimo sistema defensivo do São Caetano.
Então, Kléber cruzou uma vez e Zé Roberto, impedido, ainda tentou um peixinho. Depois o mesmo Zé Roberto cabeceou para fora, rente à trave esquerda. Em determinado momento, Vanderlei Luxemburgo, reconhecido por enxergar mais do que os treinadores comuns, chamou o Menino da Vila Junior Moraes e pediu que se aquecesse.
Aos 20 anos e um mês, Moraes, filho de Aluisio Guerreiro, outro Menino da Vila dos anos 70, entrou no lugar de Jonas. É evidente que Jonas era mais técnico, porém o que se queria naquele momento era um gol, apenas um gol, e nesse quesito o ainda inexperiente filho do Guerreiro tinha o espírito mais preparado para romper a lógica.
Hoje é fácil dizer porque a história já foi contada, mas é preciso admitir que naqueles últimos momentos o Morumbi escureceu e um ar frio percorreu as arquibancadas. Homens de pouca fé talvez tenham duvidado do vaticínio dos deuses do futebol. E o tempo corria…
Quinze 15 minutos, doze, dez, nove… Os gritos vinham abafados, roucos, sem ar. A bola foi jogada na ponta esquerda, onde Kléber a dominou e, mesmo com pouco espaço, arrumou um jeito de bater de canhota, com uma curva, hoje sabemos, celestial. Moraes, gene de centroavante no sangue, esperava no lugar certo, mais para o chamado segundo pau. Na verdade, teve de jogar o corpo para trás, inclinar a testa para o gramado e deixar a bola bater e escorrer, rápida, para o canto. O experiente Luiz Silva não contava com a astúcia e a ousadia do garoto santista de nascimento e de time.
Quem já presenciou um gol de título que há minutos, dias, semanas, estava preso na imaginação e na garganta, pode imaginar a comoção que se espalhou pelo Morumbi. Estranhos se abraçavam, amigos choravam nos ombros um do outro. Adailton e Moraes chorariam depois, no campo. Poucas vezes um título paulista gerou tal sensação de volta por cima, de milagre que estava escrito nas estrelas mas só os santistas sabiam.
Campanha quase perfeita
Além da derrota para o São Caetano, no primeiro jogo da final, o Santos só perdeu mais uma partida no campeonato, esta sim inesperada. Caiu diante do São Bento, na Vila Belmiro, por 2 a 0, com dois gols no finalzinho do jogo. No mais, saiu invicto nos clássicos, com vitória de 2 a 1 sobre o Corinthians e empates com Palmeiras (3 a 3) e São Paulo (1 a 1), e ganhou todos os outros jogos da fase de classificação.
Com mais pontos ganhos (50, contra 32 do São Caetano), mais gols marcados (45 a 32) e melhor saldo (26 a 10), o Alvinegro Praiano fez uma festa particular na noite de entrega dos prêmios aos melhores do campeonato. Fábio Costa foi o melhor goleiro; Antonio Carlos, melhor zagueiro; Maldonado, volante; Zé Roberto, meia; Marcos Aurélio, atacante, e ainda Luxemburgo foi escolhido pela Federação Paulista como o melhor técnico. Para completar, Zé Roberto também ganhou como o craque do campeonato.

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