Centro de Memória
O imponente troféu “A Vitória”, em exposição no Memorial das Conquistas, é um dos grandes legados do primeiro ano mágico da história do Santos. No feriado de 21 de abril de 1927, uma quinta-feira à tarde, o clube participou da inauguração do Estádio de São Januário, na cidade do Rio de Janeiro, na época Distrito Federal. O Alvinegro goleou o anfitrião Vasco da Gama por 5 a 3 e mostrou porque era reconhecido como o melhor time do Brasil.
Os vascaínos tinham se mobilizado em memorável campanha para arrecadar contribuições que possibilitaram erguer, em menos de 12 meses, um colosso. O estádio de São Januário durante muitos anos foi considerado o maior estádio particular da América do Sul e quem deu o pontapé inicial desse encontro histórico foi o presidente da República do Brasil, Washington Luiz.
O chefe da nação foi recebido sob calorosas e prolongadas salvas de palmas e o hino nacional executado por duas bandas de música. A inauguração do campo foi feita pelo presidente da Confederação, Oscar Costa. Ele desatou a fita inaugural e as equipes entraram em campo para delírio da torcida.
O time santista vestia elegantes paletós listrados em preto e branco e tinha a seguinte formação: Tuffy, David e Bilú; Hugo, Júlio e Alfredo; Omar, Camarão, Feitiço, Araken e Evangelista. Quem dirigia a equipe era o lendário Urbano Caldeira.
O jogo começou equilibrado, com lances de ataque para os dois lados, mas a linha ofensiva do Santos era mais consistente. Aos 20 minutos Araken chutou para o gol de Nelson. O goleiro vascaíno rebateu a bola nos pés do atacante Evangelista. O ponta-esquerda do Santos finalizou, marcando o primeiro gol do novo estádio. O Vasco da Gama reagiu, impulsionado por um público de 40 mil pessoas – o maior já registrado no Brasil – e empatou três minutos depois, com Negrito. Apesar do alvoroço da torcida, o Santos conseguiu segurar o ímpeto do time da nova casa até o fim do primeiro tempo.
Aos 15 minutos da segunda etapa Evangelista cobrou o escanteio e Feitiço entrou para colocar o Santos novamente na frente. Porém, a reação do Vasco não demorou: aos 21 minutos foi a vez de Bahiano empatar. Mas o jogo aberto, ofensivo, favorecia aos habilidosos atacantes santistas, e aos 28 minutos Omar colocou o Alvinegro Praiano novamente na frente.
O Vasco se empenhou imediatamente em busca de novo empate, mas dessa vez quem marcou, aos 31 minutos, foi o admirável meia santista Araken Patusca, elevando o marcador para 4 a 2. Quatro minutos depois, Evangelista fez o seu segundo gol na partida, construindo a goleada de 5 a 2, que os vascaínos diminuíram para 5 a 3 nos momentos finais.
Os vencedores foram carregados em triunfo. No vestiário, jogadores e dirigentes do Santos se abraçaram, comemorando a imortal vitória no grande estádio inaugurado por eles. Aos vascaínos coube reconhecer o mérito e parabenizar os adversários por meio de seu presidente, Antônio Campos, que foi ao vestiário dos visitantes para os cumprimentos. Vivíamos tempos de educação e cordialidade no futebol.
Descontente, porém, com o resultado, a direção vascaína pediu revanche ao Santos e foi atendida. A oportunidade surgiu quando o Fluminense marcou a reabertura do Estádio das Laranjeiras, em 14 de julho daquele ano. Assim, novamente Santos e Vasco se enfrentaram, e dessa vez o Santos goleou por 4 a 1, após uma vantagem por 4 a 0.
Inconformados com nova derrota, alguns jogadores vascaínos apelaram para a violência e para provocações, mas os santistas agiram como cavalheiros o tempo todo, o que fez a imprensa carioca passar a chamar o Santos de “Campeão da Técnica e Disciplina”.
Dois alvinegros sem preconceito
A inauguração do estádio de São Januário representou a libertação da comunidade vascaína da opressão dos clubes elitistas e racistas do Rio de Janeiro, que queriam proibir o cruzmaltino de participar do campeonato carioca e para isso o obrigaram a ter um estádio próprio.
Na verdade, o Vasco era discriminado por ter negros e gente humilde em suas fileiras. Assim, sem nenhuma ajuda, a não ser a de seus sócios e torcedores, os vascaínos ergueram o maior estádio das Américas e convidaram o Santos para o jogo inaugural, no evento de enorme repercussão, que contou com a presença do presidente da República, Washington Luís, e do aviador português Sarmento de Beires, autor da travessia Lisboa – Rio de Janeiro.
O Santos era a sensação do futebol paulista, tanto que naquele ano chegaria à marca inédita de 100 gols no campeonato paulista, com média jamais igualada de 6,25 gols por jogo. E bem provavelmente foi o time convidado para a festa porque Santos era uma cidade sem preconceitos, aberta para o mundo, a primeira do Estado a abolir a escravidão. Assim, aquele confronto, mais do que um clássico entre dois times essenciais ao futebol brasileiro, representava um ato histórico contra o racismo étnico e social.