Por Odir Cunha, do Centro de Memória
A história vigente do futebol brasileiro foi contada pela imprensa das capitais, pelo prisma de jornalistas torcedores dos times dessas capitais. Isso, obviamente, deixou lacunas. A história da maior goleada no centenário Clássico Alvinegro, entre Santos e Corinthians, ocorrida em 4 de setembro de 1927, é uma das que se perderiam, convenientemente, no tempo, não fosse o ofício de se mergulhar no passado e buscar as verdades escondidas.
Era um domingo e o campo da Antárctica Paulista recebia um enorme público para ver o duelo entre Corinthians e Santos, pela décima primeira rodada do Campeonato Paulista. Os dois times, além do Palestra Itália, lutavam pela liderança do campeonato. Até ali o Santos fazia uma campanha magnífica.
Sua linha atacante, com Omar, Camarão, Feitiço, Araken e Evangelista era uma das mais extraordinárias já vistas em nosso futebol. A defesa também se situava entre as melhores, com Tuffy, David e Bilu; Alfredo, Júlio e Hugo. Com vitórias nos dez jogos anteriores, o Alvinegro Praiano já tinha marcado 80 gols, média de oito por partida, e obtido cinco goleadas por 10 gols ou mais.
Naquele mesmo ano o Santos tinha goleado o Vasco da Gama por 5 a 3, na inauguração de São Januário, e voltado a golear o esquadrão cruzmaltino por 4 a 1 na inauguração dos refletores do Estádio de Laranjeiras – quando recebeu do jornalista Carlos Gonçalves, de O Globo, o epíteto de “campeão da técnica e da disciplina”.
Apesar do impressionante retrospecto, na apresentação do Clássico Alvinegro o Santos não mereceu muitas tintas da imprensa paulistana. Provavelmente imaginou-se que as goleadas anteriores do time treinado por Urbano Caldeira se devessem mais à fragilidade dos adversários do que à categoria dos santistas.
Recebido com grande ovação da plateia, o alvinegro da capital entrou em campo com Colombo, Grané e Del Debbio; Christófani, Vanni e Leone; Apparicio, Gamba IV, Gamba I, Ratto e De Maria. Seu técnico era Ângelo Rocco.
Precisamente às 15h45 o árbitro Antonio de Souza Villas Boas deu início à partida, que começou bastante movimentada. O time da casa foi ao ataque e obrigou Tuffy a uma boa defesa. O Santos só partiu para a ofensiva depois de sofrer dois escanteios seguidos.
1, 2, 3, 4… Não perca a conta
Aos 15 minutos de jogo Omar escapou pela direita e bateu na saída do goleiro Colombo para fazer 1 a 0. Cinco minutos depois, Camarão ampliou. O alvinegro da capital reagiu e Tuffy teve de fazer duas defesas seguidas, mas aos 25 minutos Camarão avançou driblando pelo meio da defesa e marcou o terceiro do Santos.
Um minuto mais e De Maria recebeu passe de Gamba IV para fazer o primeiro gol do Corinthians. O alvinegro local se animou, mas aos 35 minutos Araken fez o quarto do Santos após receber bom passe de Feitiço. E assim terminou o primeiro tempo, com a vantagem de 4 a 1 para o Alvinegro Praiano.
Logo no início da segunda etapa Camarão marcou novamente, elevando o marcador para 5 a 1. Esse gol deixou o jogo mais tenso e um tanto violento. Júlio saiu de campo com o rosto machucado depois de receber um chute (sem querer?) de Gamba IV. Como as substituições eram proibidas, regra que muitas vezes favorecia o infrator, o Santos ficou nove minutos com um jogador a menos, até que Júlio pudesse retornar.
Na sequência, Evangelista fez o sexto, aproveitando passe de Araken, mas o árbitro invalidou alegando impedimento. Então, Tuffy espalmou para escanteio um chute de Grané. Após a cobrança, Gamba I cabeceou e Tuffy defendeu novamente.
Aos 20 minutos não teve jeito: Feitiço recebeu passe de Araken e marcou o sexto gol santista. Um minuto depois Tuffy não conseguiu encaixar um chute de De Maria e Gamba I aproveitou o rebote para diminuir para 2 a 6. Pouco depois, Feitiço abandonou o campo, machucado, e o Santos voltou a ficar com um jogador a menos até os 30 minutos, quando o artilheiro voltou.
O jogo prosseguiu com ataques de parte a parte e defesas de Tuffy e Colombo, mas o Santos tinha atacantes mais eficientes e aos 38 minutos Araken penetrou pelo meio da defesa contrária e marcou o sétimo gol.
Pouco depois, o mesmo Araken recebeu bom passe de Evangelista e fez o oitavo gol santista. A três minutos para o final, Grané cobrou falta de David em Gamba I e fez o terceiro gol dos anfitriões. 8 a 3, este foi o resultado da maior goleada do clássico mais antigo de São Paulo.
A imprensa, com cara de paisagem
Ao se pesquisar este jogo nos jornais da época, percebe-se um estranho distanciamento, como se o jogo nem fosse tão importante. Não se pode esquecer que até ali o alvinegro da capital já tinha sido campeão paulista cinco vezes, enquanto o Santos era considerado – ao menos pela imprensa carioca – o melhor time do País.
O Correio Paulistano, com o título “A tarde sportiva de ante-hontem”, publicou apenas uma foto do time do Santos posado (uniforme todo branco, com um cinto preto na cintura) e a legenda: “O quadro do Santos F. C., que ante-hontem conseguiu derrotar o Corinthians pelo elevado score de 8 a 3”.
A cobertura da influente Folha de Manhã, diário da capital paulista precursor da Folha de São Paulo, se resumiu a descrever os lances do jogo, sem nenhum comentário sobre a estrondosa vitória santista. Curiosamente, o alvinegro da capital faria sua festa de aniversário três dias depois, em 7 de setembro. Provavelmente comentar derrota tão acachapante colocaria em risco o convite para o comes e bebes.