Santos já nasceu com fome de gol

Por Odir Cunha, do Centro de Memória
Quando se analisa com cuidado e carinho a história do Santos, percebe-se que estar a quatro gols de se tornar o primeiro clube a alcançar 1.000 gols na era de pontos corridos do Campeonato Brasileiro, ou ser o time que mais marcou gols no futebol mundial – 12.601 antes do jogo contra o São Paulo –, não passam de consequências naturais de uma espécie de predestinação genética. O Alvinegro Praiano nasceu para fazer gols, muitos gols.
Não é surpresa que o time lidere a artilharia na era de pontos corridos do Campeonato Brasileiro, com 996 gols, 20 a mais do que o São Paulo e 25 a mais do que o Cruzeiro – coincidentemente, as equipes que enfrentará nas duas próximas rodadas da competição. Também é natural que seja o primeiro em número de gols em toda a história do Brasileiro, com 2.188, contra 2.169 do São Paulo e 2.127 do Cruzeiro.
É evidente que a chamada Era Pelé, do final dos anos 50 até quase metade dos 70, contribuiu muito para turbinar a quantidade de gols de um time que goleava meio mundo e fazia mais partidas por ano do que qualquer outro.  Mas a verdade é que antes de Pelé e depois dele o Santos conservou sua atávica fome de gol.
Quando se diz que o DNA ofensivo acompanha o Santos desde o seu nascimento, no longínquo domingo 14 de abril de 1912, não é exagero. Que time do Brasil teve, entre seus fundadores, dois adolescentes que dois anos depois já eram titulares do ataque da Seleção Brasileira?
Pois é. O ponta-direita Adolpho Millon tinha 16 anos e o ponta-esquerda Arnaldo Silveira, 17, quando fizeram parte do grupo de 39 jovens estudantes e comerciários que fundaram o Santos Foot-Ball Club e em 1914, dois anos depois, já integravam a Seleção que derrotou a Argentina e ganhou a Copa Roca, a primeira taça do nosso futebol.
Cinco anos mais tarde, esses dois santistas, precursores dos sagrados Meninos da Vila, continuavam titulares do Escrete na primeira grande conquista do futebol brasileiro: o Sul-americano/Copa América de 1919, disputado no Estádio de Laranjeiras – trajetória épica na qual tiveram a companhia de Haroldo Pires Domingues, um meia carioca que veio para o Santos em 1917, depois de ser campeão do Rio de Janeiro pelo América.
Haroldo, aliás, foi o primeiro jogador a marcar mais de um gol em uma partida da Seleção Brasileira, façanha ocorrida em 12 de outubro de 1917, na goleada de 5 a 0 sobre o Chile, pelo Campeonato Sul-americano/Copa América de 1917, no Central Parque, em Montevidéu.
Ataque demolidor, com ou sem títulos
Logo na primeira competição completa que disputou, o Campeonato Santista de 1913, o Santos já mostrou que seria um time artilheiro. Em jogos de turno e returno contra Atlético Santista, América e Escolástica Rosa marcou 35 gols, média de 5,83 gols por partida.
Sua primeira participação no Campeonato Paulista, em 1913, foi decepcionante. Sem dinheiro para as passagens de trem e os lanches, o time só fez quatro jogos e sofreu três goleadas. Mas ao menos no jogo mais importante, o primeiro clássico de São Paulo, contra o Corinthians, jogou o fino e goleou o rival por 6 a 3, na Capital, com dois gols de Millon e dois de Arnaldo.
Ausente dos Paulistas de 1914 e 1915, o Santos voltou a participar do Estadual em 1916, porém, seu ataque só passou a ser um dos mais efetivos do Estado, e do País, a partir de 28 de setembro de 1924, quando sua linha ofensiva passou a ser formada por Omar, Camarão, Siriri, Araken e Evangelista. Nesse dia, um domingo, o quinteto estreou contra a Portuguesa, em jogo pelo Campeonato Paulista, na Vila Belmiro, e o Santos goleou por 7 a 1, com três gols de Camarão, três de Siriri e um de Araken.
Esse mesmo ataque, reforçado pelo artilheiro nato Feitiço e pelo ótimo reserva Hugo, chegou à marca de 100 gols no Paulista de 1927, na primeira vez em que um time alcançou três dígitos em uma competição na América do Sul. Mesmo sem conquistar o título paulista, o que só aconteceria em 1935, o Santos passou a ser uma equipe temida por sua capacidade ofensiva.
Só para se ter uma ideia desse poder, basta lembrar que de 1924 a 1933, o primeiro ano do profissionalismo, o Santos marcou 488 gols nessas dez edições do Estadual. Enquanto isso, o Corinthians, quatro vezes campeão nesse mesmo período, fez 446 gols, 42 a menos.
Campo dos sonhos dos artilheiros
Pela tradição de valorizar jogadores habilidosos e ofensivos, pelo respeito aos jovens surgidos na Vila Belmiro, pelo amor incondicional ao jogo ofensivo, por tudo isso o Santos é um campo fértil para revelar e consolidar artilheiros. A saga, iniciada com o excelente cabeceador Ary Patusca, filho de Sizino, primeiro presidente do Santos, prossegue até hoje.
Nenhum clube revelou tantos atacantes de renome como o Santos. Só contanto apenas os mais destacados, teremos Millon, Arnaldo, Araken, Feitiço, Pagão, Pelé, Coutinho, Pepe, Serginho, Juary, João Paulo, Robinho, Neymar, Gabigol…
Não por acaso o Alvinegro Praiano é o time com mais artilheiros nas competições nacionais. Só no Campeonato Paulista teve o maior goleador em 28 temporadas; no Brasileiro foram 14; no Torneio Rio-São Paulo, cinco; na Copa Libertadores, quatro; na Copa do Brasil, três. No Mundial Interclubes Pelé marcou cinco gols na decisão de 1962, contra o Benfica, marca ainda não superada.
O curioso é que o esquema e a filosofia ofensiva do Santos permitem que até quem não é atacante faça muitos gols e até consiga liderar a tabela de artilheiros, como ocorreu no Campeonato Paulista de 2011, com Elano; 2014, com Cícero, e em 2019, com Jean Motta.
O mesmo ambiente santista, que cheira praia e liberdade, é extremamente favorável à recuperação de atacantes em má fase, ou em declínio. Isso ocorreu com Serginho Chulapa em 1983. Aos 29 anos, alguns diziam que já estava em queda no São Paulo. Na Vila, recuperou a alegria de jogar e marcar gols, tornando-se artilheiro do Campeonato Paulista em 1983 e 1984 e do Brasileiro em 1983.
O exemplo mais recente é o de Gabriel Barbosa, o Menino da Vila Gabigol. Depois de artilheiro, pelo Santos, das Copas do Brasil de 2014 e 2015, foi contratado pela Internazionale de Milão e passou dois anos na Europa, período em que participou de 15 jogos e marcou apenas um gol. Esse retrospecto fez com que muitos o considerassem acabado para o futebol, mesmo com apenas 20 anos. Foi aí que o Santos voltou à sua vida.
Contratado por empréstimo no início de 2018, aos poucos se firmou no time e voltou a ser um dos melhores atacantes do País, tornando-se artilheiro do Campeonato Brasileiro de 2018, com 18 gols. Neste ano de 2019, destaque do Flamengo, já igualou a marca de Zico, com 21 gols no Brasileiro, e tem tudo para bater todos os recordes até o fim do campeonato.
O Santos tem a quarta artilharia deste Brasileiro, com 48 gols, e Eduardo Sasha é o quarto goleador da competição, com 12 gols. Outros atacantes de destaque do Alvinegro têm sido Marinho, Soteldo e Carlos Sánchez. Com nove gols marcados nos três jogos mais recentes e a quatro gols de uma marca histórica, o Alvinegro Praiano continua sendo uma atração para quem aprecia o momento mais belo e emocionante do futebol.
Como sempre ocorre na história santista, jovens atacantes já estão na fila para ganhar espaço no time principal e botar a bola nas redes adversárias. Tailson, 20 anos, autor do gol da vitória contra o Vasco, já está no elenco profissional, mesmo caminho de Kaio Jorge, titular da Seleção Brasileira que luta pelo título do Mundial Sub-17. Enfim, é o Santos fazendo jus ao seu estigma e a um de seus valores mais preciosos: a ousadia.

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