Vasconcelos, o craque boêmio que colocou Pelé na linha

Guilherme Guarche, do Centro de Memória
Uma das mais conturbadas histórias vividas por um jogador que vestiu a camisa do Santos foi a de viveu Válter Fernandes Vasconcelos, ou simplesmente Vasconcelos, como ficou conhecido no mundo da bola.
Mineiro nascido em Belo Horizonte, num domingo de outono, 25 de maio de 1930, ele começou sua carreira nas categorias de base do Vasco da Gama, onde ficou por dois anos, transferindo-se a seguir para a Portuguesa Santista e em 1953 contratado pelo Santos por 350 mil cruzeiros.
Em sua estreia no Peixe, dois meses antes de completar 23 anos, Vasconcelos teve uma atuação excepcional e marcou dois gols na goleada de 6 a 2 em amistoso contra o Juventus, na Vila Belmiro.
Naquele domingo, 15 de março de 1953, o Santos foi escalado pelo técnico Artigas com Manga, Hélvio (depois Cássio) e Feijó; Nenê, Formiga (Aristóbolo) e Zito (Ivan); Nicácio (Otavinho), Nelson Adans, Álvaro, Vasconcelos e Tite. Era o início de uma trajetória brilhante em campo, mas irresponsável fora dele, marcada pelas farras e o uso constante de bebidas alcoólicas.
Apesar disso, Vasconcelos foi o artilheiro do Torneio Rio-São Paulo de 1953, com oito gols. Também se manteve como o artilheiro-mor nas duas primeiras temporadas pelo clube.
Era um ponta de lança ousado, de toques refinados e certeiros, que usava a mesma camisa 10 que mais tarde seria imortalizada pelo então seu reserva Pelé, e formou com seu amigo Pepe a ala esquerda do ataque santista, formado, além dos dois, pelos atacantes Alfredinho, Álvaro e Del Vecchio.
No Campeonato Paulista de 1955, que encerrou o jejum de 20 anos sem o tão sonhado título estadual, Vasconcelos participou de 24 jogos dos 26 disputados pelo Alvinegro, sendo o vice artilheiro do time, com 13 gols. Com a bola no pé, era um craque. Longe dos campos, um boêmio.
No entanto, não foi seu comportamento inadequado que abreviou sua carreira, e sim uma grave contusão. Em 9 de dezembro de 1956, pelo segundo turno do Campeonato Paulista, o Santos perdeu para o São Paulo por 3 a 1, sob um gramado molhado, e num lance não intencional o então zagueiro são-paulino Mauro Ramos de Oliveira machucou seriamente o desafortunado atacante do Peixe.
Vasconcelos fraturou a tíbia na jogada e dessa data em diante nunca mais voltou a jogar como antes. O Santos ficou com o título de Bicampeão Paulista, mas perdeu seu maior ídolo.
Quis o destino, porém, que com a grave contusão do titular surgisse como seu suplente imediato um garoto, apelidado “Gasolina”, que viria a ser ainda melhor do que o ídolo ferido. O eterno Rei Pelé que o sucedeu no ataque praiano, em uma entrevista recente fez a seguinte declaração: “O Neymar é um bom jogador, mas quantos gols de cabeça fez na vida? O Vasconcelos era dez vezes melhor do que ele”.
Após longo tempo afastado dos gramados, Vasconcelos voltou a jogar,  mas já não era o mesmo. A grave lesão afetou o seu lado emocional e, muito abalado, jamais conseguiu recuperar seu grande talento futebolístico.
Sua última participação com a camisa do Alvinegro ocorreu em 11 de maio de 1958, no Estádio Cristiano Osório, em Poços de Caldas, no amistoso diante do Combinado Caldense/Rio Branco que o Santos venceu por 4 a 0, com gols de Álvaro (2), Pagão e Dorval.
Naquele domingo distante o técnico Lula escalou o time com Manga (Laércio), Getúlio e Mourão; Feijó, Ramiro e Dalmo; Dorval, Jair Rosa Pinto (Zezinho), Pagão (Raimundinho), Álvaro (Dufles) e Vasconcelos.
No período em que defendeu o Alvinegro Praiano, de 1953 a 1958, conquistou os títulos de Bicampeão Paulista (1955/56), Torneio Internacional da Federação Paulista de Futebol, Torneio de Classificação de 1956 e Taça dos Invictos no mesmo ano. Nesse tempo jogou 175 partida, e marcou 114 gols. É o 16º artilheiro santista.
Em 1960 ainda tentou jogar em outro clube da cidade, o Jabaquara, mas não foi bem-sucedido. Em 1961 retornou para o Vasco da Gama, não sendo aproveitado, e jogou também no Náutico, de Recife. No ano seguinte pendurou as chuteiras na equipe do Apucarana, time do Centro Norte do Paraná.
Amante declarado da boêmia, no entanto não levava ninguém com ele para curtir a vida noturna. Era um farrista solitário, apreciava as noitadas regadas a muitas bebidas, principalmente nas boates da chamada “Boca de Luxo”, na zona portuária de Santos. Lá ficava até o Sol nascer, bebendo e dançando no “Samba-Danças”, um de seus lugares preferidos, onde desfrutava da amizade do conhecido “Nego Orlando”, famoso “Leão de Chácara” da cidade.
Quando se cansava, ou não estava mais sóbrio, era levado para o clube por algum diretor que já conhecia sua rotina e os lugares por ele frequentados. Em dias de jogos na Vila Belmiro acordava horas antes do início da partida, tomava banho, almoçava, jogava, fazia seus gols e o Santos, invariavelmente, vencia.
Devido ao seu comportamento nada exemplar, poucos acreditaram quando ele levou a sério o pedido de Dondinho, pai de Pelé, quando este deixou o filho aos cuidados dos jogadores do time santista, Vasconcelos de imediato agarrou o garoto pelo pescoço e falou: “Deixa comigo “seo” Dondinho”. Sabe-se que ele cumpriu à risca o prometido e jamais permitiu que o futuro Rei do Futebol colocasse uma gota de bebida alcoólica na boca.
Certa feita, durante a festa de aniversário do goleiro Agenor Gomes, o popular Manga, vários jogadores do elenco santista comemoravam a data festiva na casa do aniversariante quando Vasconcelos percebeu que Pelé estava com um copo de bebida alcoólica na mão. Então, atravessou a sala e tirou o copo do futuro melhor jogador do mundo, repreendendo-o. Um gesto digno de aplausos diante de tantos erros cometidos em sua sofrida e polêmica existência.
O amigo José Macia, o Pepe, chamava Vasconcelos, carinhosamente, pelo apelido de “Bagaço”, pois o craque tinha o vício de chupar laranjas nos vestiários, não só nos treinamentos, como também nas partidas. Para Pepe, que conviveu com ele dentro e fora do campo, Vasconcelos foi essencial para a ascensão do Santos em meados da década de 1950:
– Ele era um dos poucos jogadores que morava no Estádio Urbano Caldeira naquela época. Estava sempre nos arredores da praça de esportes. Ficava ali próximo ao portão de entrada, onde tinha uma pedra muito grande. Ele ficava sentado nesse local antes e depois dos treinos, com um enorme chapéu de palha na cabeça e uma surrada camisa de flanela, batendo papo com os torcedores. Era muito querido. Foi muito importante para a subida meteórica que o Santos teve. Se não tivesse quebrado a perna, talvez Pelé demorasse um pouco mais para ser revelado.
As noitadas intermináveis e a falta de compromisso com a dura realidade da vida o levaram para sempre deste mundo. Vasconcelos, o Bagaço o boêmio e lendário craque, faleceu num sábado, em sua casa no bairro São Joaquim, na catarinense Brusque, no Vale do Itajaí, onde foi sepultado anonimamente. Morreu abandonado pela família e esquecido pelos poucos amigos, com apenas 52 anos de idade.

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