Milésimo de Pelé, o maior espetáculo da Terra

Por Odir Cunha, do Centro de Memória
Hoje faz 50 anos que a humanidade ignorou os astronautas e a Lua para ver Pelé e a bola.
No mesmo dia 19 de novembro de 1969 em que Pelé marcou, de pênalti, o milésimo gol de sua carreira, o homem pisou na Lua pela segunda vez. A aventura dos astronautas Charles Conrad e Allan Bean, da Apollo 12, foi transmitida para todo o planeta, assim como a partida entre Santos e Vasco, no Maracanã. Mas a audiência para ver os cinco passos de Pelé até a bola e o chute seco, colocado, no canto direito de Andrada, eclipsou totalmente o passeio dos norte-americanos no poeirento solo lunar.
No mesmo dia em que a Apollo 12 foi lançada, em 14 de novembro, o Santos venceu o Botafogo da Paraíba por 3 a 0, em um amistoso em João Pessoa, e Pelé marcou um gol, de pênalti, chegando a 999 na carreira. Em seguida, o 10 do Santos vestiu a camisa número 1 e foi atuar como goleiro, no lugar de Jair Esteves. Era evidente que gol 1000 estava reservado para um palco maior.
Poderia ter sido a Fonte Nova, em Salvador, local do jogo do dia 16 de novembro, contra o Bahia, pela Taça de Prata/ Campeonato Brasileiro. Bem que Pelé tentou, mas o gol não saía. Na metade do segundo tempo, após tabelar com Manoel Maria, Pelé driblou o goleiro Jurandir e chutou para o gol vazio, mas o zagueiro Nildo, conhecido como Birro Doido, se atirou na bola e salvou o gol certo. Quem acabou marcando primeiro foi o Bahia, por meio de Baiaco, aos 39 minutos do segundo tempo. Quatro minutos depois, Pelé chutou, a bola bateu na trave e no rebote Jair Bala empatou para o Santos.
“Ninguém que queira perder um gol vai acertar a trave. Não tenho preferência para marcar o milésimo nesse ou naquele lugar, onde sair, estará bom”, disse Pelé.
Àquela altura o Brasil e o mundo acompanhavam, ansiosos, a corrida para o gol 1000. Nenhum outro jogador profissional havia chegado àquela marca, apesar de alguns cronistas defenderem que Friedenreich, maior nome do futebol amador do Brasil, tinha sido o pioneiro.
Estudos posteriores de Alexandre da Costa, no livro “O tigre do futebol”, comprovaram que Friedenreich tinha marcado 554 gols em 561 jogos. Outra pesquisa, de Orlando Duarte e Severino Filho, para o livro “Fried versus Pelé”, chegaram a 558 gols em 562 partidas. Enfim, Fried fez cerca de metade dos gols do Rei.
Quando chegou a quarta-feira, 19 de novembro, a expectativa pelo Milésimo monopolizava as conversas do futebol. Obrigado a dividir o elenco com a Seleção Brasileira, da qual era o time base, o Santos fazia um segundo semestre sofrível e não tinha mais chance de ficar entre os dois primeiros colocados de seu grupo, o que lhe daria o direito de jogar o quadrangular decisivo do Torneio Roberto Gomes Pedrosa / Taça de Prata.
Após se tornar tricampeão paulista e campeão da Recopa Mundial em junho, esperava-se que o time pudesse ganhar seu sétimo título brasileiro ainda em 1969, mas as exigências da Seleção exauriram o time, que perdeu nas quatro primeiras rodadas do Roberto Gomes Pedrosa e ficou longe das vagas. O Milésimo de Pelé passou a ser o maior fator de divulgação do Santos no campeonato.
Pelé, um árbitro e um goleiro
O Vasco também não tinha maiores pretensões no torneio, já que era o último de seu grupo. Mas mesmo assim o espetáculo atraiu 65.157 pessoas ao Maracanã. Além de Pelé, dois personagens esperavam a partida com um misto de motivação e receio: o goleiro vascaíno Andrada, argentino de 30 anos que viera do Rosario Central e tinha o apelido de El Gato, e o árbitro alagoano Manoel Amaro de Lima, de apenas 23 anos, que tinha começado na profissão ainda adolescente, em competições amadoras na Federação Alagoana de Desportos, e se via diante de seu grande momento.
Antes do jogo a repórter Cidinha Campos, da TV Record, entrevistou Andrada, e ele, desconfortável, disse que não gostaria de ser lembrado como o goleiro que sofreu o gol 1000 de Pelé. Manoel Amaro, por sua vez, já tinha dito que, para ele, aquele seria apenas mais um jogo.
Mas a bola rolou e o clima tenso que só se sente nas grandes decisões pairava no ar. Todo de branco, com camisas de mangas curtas, o Santos era melhor, mas foi o Vasco que abriu o marcador, com Benetti, aos 16 minutos do primeiro tempo.
A pressão santista aumentou na segunda etapa e o gol de empate veio aos 10 minutos. Edu cruzou, Andrada não cortou e Renê acabou cabeceando contra sua própria meta. Então, o nome do jogo passou para “vamos ver o gol do Pelé”. Edu chegou a ter uma chance clara para bater a gol, mas esperou pela chegada de Pelé. Ao empurrar-lhe a bola, um zagueiro vascaíno apareceu, apavorado, e aliviou o perigo.
Aos 33 minutos deixaram Clodoaldo livre. Ele avançou pelo meio da intermediária vascaína e enfiou uma bola rasteira para Pelé. Este dominou na corrida e se preparava para chutar quando foi abalroado por dois zagueiros adversários e caiu sobre a marca de pênalti. Manoel Amaro, sem estardalhaço, foi caminhando até onde estava Pelé e abaixou o corpo para apontar a marca.
“Marquei o pênalti com convicção”, diria o árbitro anos depois. “Estava muito próximo do lance. Seria melhor se o Milésimo tivesse ocorrido com a bola rolando, mas foi emocionante fazer parte daquele momento. Estamos aqui para cumprir uma missão. E eu cumpri a minha.”
Desesperado, primeiro Andrade jogou a bola com força para o chão, depois tentou argumentar com o árbitro e, por fim, conversou com Pelé. Um outro jogador vascaíno cavava a marca de pênalti com o pé. Os jogadores do Santos foram todos para a risca do meio de campo. O público passou a gritar o nome de Pelé insistentemente.
De frente para o gol, Pelé se abaixou para arrumar as meias. Depois se virou para o campo, viu que seus companheiros estavam perfilados no círculo central, sorriu e comentou algo. Depois ele diria que aquilo foi uma temeridade, pois poderia perder o gol e não haveria ninguém, a não ser ele, para pegar o rebote. Aos poucos todos saíram da área e ficaram só ele, a bola e Andrada.
Primeiro deu três passos como se caminhasse sem nenhuma pretensão. Acelerou no final, deu uma ligeira paradinha e, num tiro seco, bateu com o pé direito no canto direito. Andrada voou com vontade e ainda conseguiu resvalar na bola. Ao cair no gramado, com o corpo deslocado pelo tremendo impulso, seu rosto estava virado para dentro do gol e pôde ver a bola. Então, desacorçoado, passou a esmurrar o chão.
Os jornalistas saíram de trás do gol e imediatamente colocaram Pelé sobre os ombros (em pensar que menos de ano depois, na Copa do México, Pelé teria de convencê-los de que não estava acabado para o futebol). O estádio gritava o nome do Rei. O locutor Oduvaldo Cozzi, que narrou a partida para as tevês Tupi e Excelsior, só repetia: “Olha a loucura! Olha a loucura”!
Então, dirigentes do Vasco pediram a Pelé para vestir a camisa do time carioca, que ele já tinha vestido em alguns jogos por um combinado Santos-Vasco, em 1957. Na camisa havia o número 1000. Pelé deu a volta olímpica com ela, seguido por uma pequena multidão. Ao ser ouvido, pediu que o governo olhasse pelas crianças pobres do Brasil. Depois, diria que pensou em dizer isso ao ver, três dias antes, em Salvador, um grupo de adolescentes tentando roubar um carro. Como se sabe, Pelé ainda seria tricampeão mundial e semearia o futebol nos Estados Unidos jogando pelos Cosmos de Nova York.
O goleiro Andrada percebeu, com o tempo, que era melhor ser lembrado como o goleiro do gol 1000, do que não ser lembrado. Após seis anos de Vasco, jogou um ano pelo Vitória, da Bahia, e depois regressou à Argentina para defender o Colón. Faleceu em 4 de setembro de 2019, em Rosário, aos 80 anos. O árbitro Manoel Amaro de Lima, também imortalizado pelo gol de Pelé, morreu em 9 de maio de 2009, aos 62 anos.
Naquela noite de sonho o Santos foi escalado pelo técnico Antoninho com  Agnaldo, Carlos Alberto Torres, Ramos Delgado, Djalma Dias (depois Joel Camargo) e Rildo; Clodoaldo e Lima; Manoel Maria, Edu, Pelé (Jair Bala) e Abel. O Vasco, do técnico Célio de Souza, jogou com Andrade, Fidélis, Moacir, Renê, Eberval, Fernando, Buglê, Benetti. Acelino (Raimundinho), Adilson e Danilo Menezes (Silvinho).

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