Feitiço, o artilheiro valente

Odir Cunha, do Centro de Memória
Nascido na capital paulista em 29 de setembro de 1901, no vale do Ribeirão Saracura, atual avenida Nove de Julho, região central da cidade, o imprevisível Feitiço foi batizado Luís Macedo e só incorporou o sobrenome “Matoso” ao iniciar a carreira de jogador. Na infância e adolescência, passadas ali, no Bixiga, atual Bela Vista, seu esporte preferido era a boc ha, moda lidade trazida pelos italianos do bairro.
Mas em um domingo as quadras de bocha estavam fechadas por luto e o jovem atlético, de 16 anos e 1,78, mais alto e forte do que os garotos de sua idade, resolveu assistir a uma partida do Jaceguai, time de várzea do Bixiga, e acabou convidado para jogar no terceiro time. Aceitou. Na semana seguinte chegou atrasado para o futebol e o técnico resolveu colocá-lo na ponta-esquerda do primeiro time. Marcou três gols e garantiu um lugar na equipe.
No livro “O Negro no Futebol Brasileiro”, de Mário Filho, Feitiço é descrito como um mulato de cabelo duro, mas quase liso. Seu irmão, Oswaldo, que também jogava futebol, tinha a pele mais escura e o cabelo pixaim. Feitiço era analfabeto, mal sabia assinar o nome, mas a habilidade e a inteligência apara jogar futebol o levariam à condição de ídolo popular.
Do Jaceguai passou para o Ítalo-Lusitano, do bairro de Pinheiros, uma equipe da segunda divisão paulistana. Nesse time, em que também marcou três gols na estreia, passou a assinar as súmulas com “Matoso” no lugar de Macedo. Habilidoso, de ótima visão de jogo, podia ser definido como um jogador técnico, mas se destacava mesmo pela garra, coragem e facilidade para marcar gols de todas as formas possíveis, principalmente de cabeça e de bico.
“Comecei a usar o bico da chuteira para me antecipar nas jogadas, dar mais velocidade à bola e evitar o choque com o adversário. Depois me acostumei e até de bate-pronto eu dava de bico sem perder a direção da bola”, disse, em entrevista para o jornalista Vital Bataglia, de O Estado de São Paulo. Quanto às cabeçadas, sempre potentes, preferia dirigi-las para baixo, a fim de dificultar a defesa dos goleiros.
Uma de suas primeiras fãs, uma menina chamada Nenela, costumava dizer que “o Luisinho parece que tem feitiço nos pés” e daí surgiu o apelido que acompanhou o craque por toda a carreira. Também seria chamado de “Mago” e Imperador do Futebol”, mas “Feitiço” era o seu favorito.
Suas atuações fizeram com o chamassem de “El Tigre da Segunda Divisão”, em alusão a Friedenreich, o grande craque do Paulistano, melhor time da época. Em 1921, aos 20 anos, Feitiço jogou um único amistoso pelo Corinthians e marcou um gol. No ano seguinte ingressou na Associação Atlética São Bento, de cores azul e branca, fundado em 1914 no Ginásio São Bento, no largo do mesmo nome, no Centro de São Paulo. Logo na estre ia pelo novo clube, contra o Minas Gerais, fez os indefectíveis três gols.
A técnica, o arrojo e, principalmente, a personalidade de Feitiço deram ao São Bento uma nova dimensão. No Campeonato Paulista de 1923 o time ficou em quarto lugar e Feitiço foi o artilheiro da competição, com 18 gols; em 1924 o São Bento foi o terceiro e Feitiço voltou a ser o artilheiro, com 14 gols, e em 1925 o São Bento finalmente levantou a taça, à frente de Corinthians, Paulistano e Santos, e Feitiço sagrou-se artilheiro pela terce ira vez seguida, com 10 gols.
Emprestado ao Palestra Itália em março de 1925 para a primeira excursão internacional do clube, à Argentina e Uruguai, participou de quatro jogos e marcou três gols. De volta ao São Bento, ajudou o clube a ser campeão e algumas de suas façanhas o transformaram em um astro do futebol paulista – como a exibição contra o Internacional, em 15 de maio.
Naquela partida, o São Bento sofreu um gol “com bola e tudo” de Caetano. Feitiço se sentiu provocado e não se cansou enquanto não driblou vários jogadores e também fez o seu gol “de bola e tudo”, enlouquecendo a torcida e contribuindo para a vitória do seu time, por 3 a 2. Em três anos de São Bento, Feitiço marcou 57 gols.
O profissionalismo só seria implantado no Brasil em 1933, mas bem antes disso alguns jogadores já recebiam para jogar. Feitiço era um deles. Juntou o pequeno salário que recebia do São Bento e em 1926, com apenas 25 anos, resolveu abandonar o futebol e investir em carroças para o transporte de miúdos de porco e boi pela cidade.
No Santos, o auge da carreira
Em 23 de janeiro de 1927 Feitiço jogou pelo São Bento em um amistoso contra o Santos, na Vila Belmiro, e marcou três gols na vitória de sua equipe por 4 a 2. A partir daí, Antônio Araújo Cunha, um dos fundadores do Santos, fez marcação cerrada sobre o craque, tentando convencê-lo a vir defender o Alvinegro Praiano. Depois de alguma resistência, Feitiço aceitou o convite e estreou no Santos em 3 de abril, um domingo festivo em que Santos e Palestra Itália jogaram pela Taça Cruz Azul, no Parque Antártica.
O jogo, parte principal de um evento definido pelo jornal A Tribuna como “um grandioso festival esportivo promovido pela Cruz Azul”, atraiu grande público, que viu o Santos pular à frente logo aos sete minutos, com Araken, depois de uma investida pelo centro. Serafini empatou, mas antes de terminar o primeiro tempo Camarão e Feitiço fizeram 3 a 1. Choveu na segunda etapa, o campo ficou enlameado e Imparato II diminuiu, mas a vitória santista por 3 a 2 foi plenamente justa .
Nesse dia o ataque do Santos jogou com Evangelista, Camarão, Feitiço, Araken e Siriri. Com o tempo, a linha titular se firmaria com Omar, Camarão, Feitiço, Araken e Evangelista. Siriri, irmão de Camarão, e Hugo seriam reservas de luxo, entrando também em boa parte dos jogos.
No domingo seguinte, 10 de abril, apenas dois dias antes de o Santos comemorar seu 15º aniversário, Feitiço jogou pela primeira vez na Vila Belmiro, em um amistoso contra o Guarani, e aconteceu algo incrível. Primeiro, ele não fez nenhum gol. Depois, o time vencia por 5 a 1 no primeiro tempo e sofreu uma virada espetacular no segundo, perdendo por 6 a 5. Essa derrota mexeu com os brios da equipe e a faria aplicar goleadas históricas no Campeonato Paulista de 1927, tornando o Santos o primeiro time a marcar 100 gols em uma competição nas Américas.
Onze dias depois, no confronto mais comentado do ano, o Santos enfrentou o Vasco na inauguração do estádio de São Januário, o maior da América Latina. A delegação santista se hospedou no Palace, melhor hotel do Rio, e entrou em campo vestindo um fraque alvinegro sobre o uniforme. Nas tribunas do estádio, tomado por 30 mil pessoas, estava o presidente da República, Washington Luís. O cardeal Dom Sebastião Leme benzeu a nova praça esportiva e as fitas foram desatadas pelo aviador português Sarmento de Beires, famoso por pilotar um voo direto entre Lisboa e Rio de Janeiro.
Feitiço teve atuação firme, brilhante e marcou, de cabeça, um dos gols da vitória santista por 5 a 3. Inconformado, o Vasco pediu revanche e em 14 de julho os times voltaram a se enfrentar, dessa vez no estádio de Laranjeiras, com nova vitória santista, por 4 a 1, e um gol do seu imparável centroavante.
Com gols em quase todos os jogos do Santos em 1927, Feitiço marcou cinco na vitória de 9 a 0 em amistoso contra o Corinthians de Santo André; cinco na goleada de 5 a 3 em amistoso contra a Portuguesa Santista; quatro nos 11 a 2 no República, pelo Campeonato Paulista; quatro na vitória de 7 a 1 em amistoso com o Barra Funda; quatro na vitória de 4 a 3 sobre o Comercial de Ribeirão Preto, pelo Campeonato Paulista… E mesmo com 28 gols marcados, Feitiço não foi o artilheiro do Paulista de 1927, prêmio que ficou com seu companheiro de ataque Araken Patusca, com 31 gols.
Dessas suas exibições no Campeonato Paulista, uma ficou marcada na memória do torcedor. Como já foi dito, Feitiço não marcou nenhum gol na sua estreia na Vila Belmiro, em um amistoso contra o Guarani, e o Santos ainda sofreu uma virada inacreditável no segundo tempo, perdendo por 6 a 5. Só que o dia da vingança de Feitiço – e do Santos – chegou.
Em 21 de agosto de 1927, um domingo, o Santos enfrentou novamente o Guarani na Vila Belmiro, dessa vez pelo Campeonato Paulista. Como no amistoso do começo do ano, o Alvinegro terminou o primeiro tempo goleando por 5 a 0. Não faltaram, porém, torcedores que temeram por nova reação do adversário.
Só que logo no início da segunda etapa Feitiço tabelou com Araken, driblou dois zagueiros, passou também pelo goleiro e, com o gol à sua mercê, parou a bola em cima na linha e ergueu a mão esquerda para a torcida, mostrando cinco dedos. Em seguida, tocou a bola para o fundo das redes e mostrou o indicador da mão direita. Com 6 a 0 contra, o Guarani estava definitivamente derrotado. A Vila, lotada, enlouqueceu.
Sem Feitiço, sem taça
O Campeonato Paulista de 1927 só terminaria no início de março de 1928, mas não havia qualquer dúvida de que o invicto Santos estava a caminho do título. O time tinha vencido todos os jogos pelo campeonato, entre eles obtido um estrondoso 8 a 3 sobre o Corinthians em plena São Paulo. Porém, entre meados de outubro e meados de novembro o Rio de Janeiro sediou o Campeonato Brasileiro de Seleções Estaduais e o Santos foi desmanchado para servir a Seleção Paulista.
Em 12 de outubro a Seleção de São Paulo estreou com uma goleada de 13 a 1 sobre o Maranhão e 11 de seus gols foram de jogadores do Santos: cinco de Araken, quatro de Feitiço e dois de Evangelista. Uma semana depois, nova goleada, 5 a 0 sobre o Espírito Santos, com três gols de Feitiço e um de Araken. Na semifinal, 7 a  na Seleção da Bahia, com mais dois gols de Feitiço. E então chegou a final, contra o Rio de Janeiro.
No domingo, 13 de novembro, o recém-inaugurado estádio de São Januário recebeu 60 mil pessoas para a decisão, entre elas o presidente da República, Washington Luís. Osvaldo abriu o marcador para os cariocas, Feitiço empatou, São Paulo era melhor e pressionava em busca do gol do título, quando o árbitro Ary Amarante, que já tinha invertido marcações a favor da seleção da casa, viu um pênalti a favor dos anfitriões.
Os paulistas não se conformaram, o jogo ficou um bom tempo naquele bate, não bate, quando um emissário desceu das tribunas, entrou em campo e disse que o excelentíssimo presidente da República pedia que os paulistas deixassem os cariocas bater o pênalti. Nisso, Feitiço respondeu que “o presidente manda no Palácio do Catete, mas na Seleção Paulista mandamos nós”. Há versões de que Feitiço teria dito que o presidente mandava no País, mas no campo mandavam eles, os jogadores. O certo é que, desobedecendo as autoridades, entre elas o chefe da delegação de São Paulo, os jogadores paulistas saíram d e campo e o pênalti que deu o título ao Rio de Janeiro foi batido com o gol vazio.
O grande problema é que o chefe da delegação paulista era o médico Antônio Guilherme Gonçalves, presidente da APEA, a Associação Paulista de Sports Athleticos, e também presidente do Santos Futebol Clube. Enfurecido particularmente pela desobediência de sete jogadores, entre eles os santistas Feitiço e Tuffy, o dirigente decidiu expulsá-los da APEA, e depois, em agitada assembleia no Santos, terminaria por expulsar Feitiço e Tuffy do clube .
O ótimo goleiro Tuffy, o melhor do país na época, jamais voltou ao Santos e acabou se transferindo para o Corinthians, onde se firmou como titular e se tornou um ídolo. Quanto a Feitiço, não participou da fase final do Campeonato Paulista, no início de 1928, quando sua ausência se revelou fatal para o Alvinegro, mas acabou voltando ao clube em julho e continuou sendo um destaque do time até 1932. Mesmo sem ser campeão estadual nesse período, Feitiço foi o artilheiro do Campeonato Paulista em 1929, com 12 gols; 1930, com o recorde de 37 gols, e em 1931, com 39 gols – marca que só seria superada em 1958 por outro santista, Pelé, com 58 gols.
No total, contando as outras três pelo São Bento, foi seis vezes artilheiro do Campeonato Paulista, o quinto maior artilheiro da história do Santos, com 214 gols, e até hoje mantém a primazia de ser o jogador com a maior média de gols da história do Alvinegro Praiano: 1,43 gol por partida.
Artilheiro em todas as equipes que defendeu, Feitiço fez 26 jogos pela Seleção Paulista e marcou 28 gols, média de 1,07 por partida; jogou apenas quatro vezes pela Seleção Brasileira e marcou seis gols, média de 1,5.
Sua exibição contra o Motherwell, da Escócia, em 24 de junho de 1928, apenas três dias depois de ser anistiado pelo Santos, lhe rendeu o apelido de “O Imperador do Futebol”. Marcou quatro gols na goleada de 5 a 0, dois em cada tempo, e saiu do estádio de Laranjeiras ovacionado por público superior a 20 mil pessoas. Segundo Mário Filho, a partir dali o Santos passou a ser chamado de “o clube de Feitiço”.
Depois do Santos, o goleador passou pelo Corinthians, que os cronistas chamavam de “o time de coração preto”, mas Feitiço, que ficou pouco tempo por lá – mesmo assim fez 12 gols em 12 jogos – preferia chamar de “o time dos calções sujos”. Em seguida, foi ídolo no futebol duro do Peñarol, do Uruguai; fez uma partida pelo Santos; brilhou no Vasco, deixou saudades no Palestra Itália e por fim, antes de se dedicar à bocha e &a grave; arbitragem no futebol, jogou ainda pelo São Cristóvão.
Um dos craques menos conhecidos do futebol brasileiro, Feitiço influenciou até na terminologia do esporte, pois antes dele não se usava a palavra “artilheiro” no Brasil. O termo, utilizado no Uruguai para identificar o centroavante Petrone, acabou sendo incorporado ao atacante brasileiro.
Araken Patusca, o artista da dupla, costumava repetir que Feitiço, além da técnica invulgar, foi o mais corajoso centroavante que ele conheceu. Herói de um tempo pioneiro e precário, muitas das súmulas e documentos que poderiam comprovar todas façanhas do incomparável goleador se perderam. Fala-se, por exemplo, que se naturalizou uruguaio para defender a seleção daquele país, mas não há provas disso. De qualquer forma, tem-se como certo que ele tenha marcado mais de 400 gols na carreira.
O insaciável artilheiro, um dos maiores responsáveis por tornar o Santos de 1927 um time mágico, faleceu em 23 de agosto de 1985, aos 83 anos, rodeado por amigos, na Associação dos Veteranos, em São Paulo. Em sua homenagem, o São Vicente Atlético Clube, de São Vicente, mudou seu nome para Feitiço. 

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