Libertadores de 2011, um título sobrenatural

Odir Cunha, do Centro de Memória
Se você reparar bem, verá que toda conquista importante do Santos tem alguma coisa difícil de ser explicada. Algo mágico, que parece ter sido planejado pelos deuses do futebol. Assim foi a Copa Libertadores de 2011, conquistada pelo Alvinegro Praiano há nove anos, na encantada noite de quarta-feira, 22 de junho, em um Pacaembu eufórico por presenciar, pela primeira vez na história do estádio, um time brasileiro se tornar campeão sul-americano.
A final não teve sustos, é verdade. O Santos segurou o empate sem gols em Montevidéu e venceu por 2 a 1 no Pacaembu, com folga. Houve a grande coincidência de disputar o título justamente contra o Peñarol, adversário da final de 1962, quando o Alvinegro Praiano foi campeão da Libertadores pela primeira vez. Mas seria apenas coincidência? Evidências anteriores indicam que tudo já estava escrito…
Veja que naquela Libertadores, em que entrou por ser campeão da Copa do Brasil de 2010, um Santos irregular, dirigido pelo técnico Adilson Batista, estreou em 15 de fevereiro mostrando um futebol pífio no empate sem gols com o Deportivo Táchira, na Venezuela.
Duas semanas depois, em 2 de março, continuou tateando e empatou em 1 a 1, na Vila Belmiro, com o paraguaio Cerro Porteño, após mostrar novamente um jogo sofrível. A partida chegava ao fim e o time vencia por 1 a 0, gol de Elano, de pênalti, aos 9 minutos do segundo tempo, quando, já nos acréscimos, o veterano Edu Dracena cometeu pênalti bobo que provocou o empate.
O jogo terminou com um gosto amargo. Para completar o clima de velório, o alto preço dos ingressos e a chuva resultaram em um público inferior a nove mil pagantes. Adilson Batista foi demitido e o interino Marcelo Martelotte assumiu o comando da equipe.
Duas semanas depois, em 16 de março, o Santos foi a Santiago enfrentar o Colo Colo. Um golaço de Elano, em falta cobrada de longa distância, deixou a torcida animada, mas o Colo Colo virou rapidinho e acabou vencendo por 3 a 2. A situação do Santos exigia um milagre.
Antes dos três jogos do returno a equipe tinha apenas dois pontos ganhos e nenhuma vitória, empatado com o Táchira. As duas vagas para as quartas de final estavam com o Colo Colo, seis pontos e duas vitórias, e Cerro Porteño, cinco pontos e uma vitória.
O experiente Muricy Ramalho foi contratado para técnico do time, mas só assistiu à partida seguinte, contra o Colo Colo, na Vila Belmiro. E ficou com os cabelos em pé. O jogo estava tranquilo, o Santos vencia por 3 a 0 e Neymar estraçalhava, quando resolveu colocar uma máscara de si mesmo para comemorar o lindo terceiro gol e foi expulso.
Também Zé Eduardo e Elano, este no banco de reservas, levaram cartão vermelho e o time passou a ser sufocado, sofrendo dois gols nos últimos minutos e quase cedendo um empate que seria fatal.
Uma semana depois, justamente no dia do seu aniversário do clube, o Santos jogaria a sorte contra o Cerro, em Assunção. Desfalcado de Neymar, Elano e Zé Eduardo, o Alvinegro teria de fazer das tripas coração e vencer, pois com uma derrota, ou mesmo um empate, estaria eliminado.
O Santos tinha cinco pontos e estava atrás do Colo Colo, com seis, e do Cerro, com oito. Naquela mesma rodada o Colo Colo enfrentaria o limitado Táchira, em Santiago, e deveria vencer, como venceu. Assim, caso empatasse com o Cerro, o Santos iria a seis pontos e ficaria a três de Cerro e Colo Colo, que poderiam fazer um jogo de compadres na última rodada e garantir a classificação mútua com um empate.
Muricy, o escolhido
Muricy Ramalho ainda não tinha duas semanas de clube quando armou o Santos para o jogo contra o Cerro, marcado justamente para o dia 14 de abril, o do aniversário de 99 anos do Glorioso Alvinegro Praiano. Paulo Henrique Ganso, voltando de uma contusão, entrou no lugar de Elano. Os reservas Diogo (depois Maikon Leite) e Keirrison (depois Alex Sandro) foram escalados no ataque.
O Santos era o único time paulista naquela Libertadores, já que o Corinthians tinha sido eliminado, pelo Tolima, na repescagem. Mas o fato de ser o solitário representante do Estado na competição não melhorou muito o tratamento desdenhoso que parte da imprensa paulistana dá ao melhor time brasileiro da história. O editor de esportes de um diário que já não existe alardeou, no seu twitter que o Santos seria eliminado justamente no dia do seu aniversário. Essa era a expectativa de muitos.
Mas o time, marcando atrás da linha da bola, como queria Muricy, anulou o ataque rival e beliscou na hora certa. Aos 11 minutos Danilo acertou um chutaço do meio da rua para abrir o marcador. Aos dois do segundo tempo Ganso enfiou para Maikon Leite, que penetrou rápido e bateu na saída de Barreto. O Cerro só foi fazer o seu gol nos acréscimos.
Com a vitória, o purgatório virou céu e o Santos garantiu a vaga ao vencer o Táchira, no Pacaembu, por 3 a 1, com gols de Neymar, Jonathan e Danilo. No outro jogo, o Cerro surpreendeu o Colo Colo, no Chile, vencendo por 3 a 2 e também se classificando para as oitavas de final.
Os deuses entram em campo
Nas oitavas, com uma maturidade inusitada, o Santos passou pelo América do México com uma vitória por 1 a 0 na Vila Belmiro – gol de Ganso de fora da área – e um empate sem gols em Querétaro, em que o goleiro Rafael fechou o gol. Mas isso não foi tudo de mais importante que ocorreu nessa fase.
Na verdade, previa-se que os grandes rivais do Santos naquela Libertadores seriam os times brasileiros. O Cruzeiro, tinha sido o melhor da fase de grupos, seguido de perto pelo Internacional, campeão da Libertadores em 2010. Ainda havia o Fluminense, campeão brasileiro de 2010, e o Grêmio.
A imprensa já previa “um Grenal épico” nas quartas, ou especulava sobre as chances de Cruzeiro e Fluminense. Para variar, via poucas possibilidades no Santos, sem perceber que o time estava bem mais fortalecido com o sistema precavido de Muricy.
Então, em 4 de maio, algo que só pode ser definido como sobrenatural aconteceu. No mesmo dia em que o Santos suportou o bombardeio do América e passou para as quartas de final, todos os outros quatro times brasileiros foram eliminados, e alguns em circunstâncias bem misteriorsas…
O Cruzeiro tinha vencido o Once Caldas, na Colômbia por 2 a 1, mas perdeu em Minas por 2 a 0. O Internacional, que tinha empatado com o Peñarol, em Montevidéo, por 1 a 1, ainda saiu ganhando em Porto Alegre, mas tomou a virada com dois gols em cinco minutos e foi eliminado. O Fluminense vencera o Libertad, no Rio, por 3 a 1, e sofreu um 3 a 0 em Assunção. Por fim, o Grêmio, que fora derrotado em Porto Alegre por 2 a 1, voltou a perder para o Universidad Católica, no Chile, por 1 a 0.
A imprensa falou em “noite trágica” para o futebol brasileiro, mas os santistas e os amantes do futebol bonito, desta ou de outras dimensões, estavam sorrindo. Com a nova configuração, o Santos passaria a ter o direito de fazer a segunda partida em casa até a final.
Nas quartas, o adversário foi o Once Caldas, o algoz do Cruzeiro. Seria um tira-teima, pois em 2004 a equipe colombiana havia eliminado o Santos, mas na Conmebol de 1998 fora eliminada por ele. Dessa vez, mais sólido, o Alvinegro venceu em Manizales por 1 a 0, gol de Patrick, e empatou em 1 a 1 em um Pacaembu lotado, com gol do cada vez mais astro Neymar.
O resiliente Cerro Porteño, que estava na competição desde a repescagem, voltou a interceptar o caminho do Santos na semifinal. No Pacaembu, Edu Dracena marcou aos 43 minutos e ficou nisso. Em Assunção, o Santos fez 2 a 0 antes dos 30 minutos (Zé Eduardo e Barreto, contra) e terminou o primeiro tempo com a vantagem de 3 a 1 (Neymar). Mas o Cerro reagiu no segundo e ainda empatou em 3 a 3, insuficiente, porém, para tirar o Alvinegro da final.
Túnel do tempo
O futebol, como a vida, é cíclico. Quarenta e nove anos depois, Santos e Peñarol jogariam novamente pelo título mais importante das Américas. Cinco vezes campeão da Libertadores, o Peñarol era o campeão do mundo quando perdeu para o Santos a final de 1962. Dessa vez, menos poderoso, equilibrou as coisas no empate de 0 a 0 diante de 60 mil torcedores, no Estádio Centenário, mas foi amplamente dominado no Pacaembu.
O Rei Pelé e os santistas mais ilustres estavam entre os 40 157 torcedores que na noite de 22 de junho viram, no primeiro minuto do segundo tempo, Arouca penetrar pelo meio, tabelar com Ganso e servir a Neymar, que acertou um chute seco entre o goleiro Sosa e a trave. Um grito de alívio reverberou pelo Pacaembu.
Aos 23 minutos, Danilo penetrou pela direita, livrou-se de um marcador e bateu de esquerda, rasteiro, rente à trave direita. Após esse segundo gol a certeza da conquista não foi abalado nem mesmo quando Durval marcou, contra, aos 34 minutos.
Ver o Pelé e o técnico Muricy sorrindo, de mãos dadas, pelo gramado do Pacaembu durante as comemorações é uma cena que ficará na história das Libertadores. A conquista confirmaria Neymar como o grande brasileiro da década e começaria a abrir espaço para os laterais Danilo e Alex Sandro na Seleção nacional. A história, enfim, estava escrita, e do jeito que os deuses do futebol gostam.

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